Três à mesa

[A razão principal da guerra no Iraque não foi a questão das armas de destruição maciça, mas o afastamento de Saddam, a fim de permitir a Washington "retirar as suas tropas da Arábia Saudita e abrir caminho ao controlo global do conflito no Próximo Oriente". A afirmação é de Paul Wolfowitz, braço direito de Donald Rumsfeld e número dois do Pentágono. Herman José é constituído arguido no caso da pedofilia. Paulo Pedroso é detido no âmbito da investigação do mesmo caso. O F.C. Porto vence a Taça Uefa na final contra o Celtic de Glasgow treinado pelo incontornável José Mourinho.

Data da primeira publicação: 30 de Maio de 2003]

Três à Mesa
Olá mana,
Lembro-me de quando ainda éramos quatro à mesa.
O pai no topo, cotovelos assentes e mãos entregues uma à outra como que encimando uma pirâmide. Olhava-nos com a alegria de quem vê crescer uma obra de arte. A sua obra de arte. E o seu sentir era um misto paradoxal do altruísmo de quem deixa crescer, de quem sabe deixar viver, e do narcisismo de quem se regozija na contemplação de si na sua obra. Nós ladeávamo-lo. A mãe e tu de um lado, eu do outro, bem de frente para ti, à distância de uma malandrice, de um risinho, de um segredo por desvendar. A mãe chegava-se bem para cima até conseguir cruzar um braço seu com os do pai. Às vezes penso que fazia isto só para sentir a força. Era a nossa mestra da mesa no preparo dos alimentos, no cruzar artista dos temperos. Lembro-me de a ver olhar o pai e servi-lo com o carinho e o desvelo de quem guarda um tesouro. E nós, cachopos de pontapés por baixo da mesa a retomar uma qualquer escaramuça de antes da refeição, nem reparávamos no milagre que ali tínhamos. E com o passar do tempo aquele ritual de quatro à mesa instaurou-se nos hábitos, no estar, no ser e ajudou a construir as pessoas que somos hoje. Era muito mais do que estarmos juntos. Tratava-se de um momento íntimo daquele núcleo de força, daquela família. O mundo lá fora podia estar a desabar de desgraça, a inchar de riso, a política podia mudar, a finança podia colapsar, podíamos até estar zangados, tristes uns com os outros ou só com o rumo da vida mas… àquela mesa não se faltava. Aquele era um momento em que estávamos os quatro em um só. Era a reunião do clã. Tudo ficava para trás e o mundo era nosso por uns momentos. Por esse tempo, de vez em quando, um de nós caía à cama com as maleitas próprias do tempo ou dos descuidos que marcavam a idade em que os casacos estorvavam e os chapéus-de-chuva eram para os velhos. Depois do tempo necessário para a recuperação ter passado, assinalavam-se as melhoras do paciente com o retorno ao convívio à mesa dos quatro. Ainda me lembro de pensar, ingénuo, no dia em que regressou à mesa após o primeiro enfarte que o pai estava curado, até já tinha jantado connosco!
Sabes, assaltaram-me estas lembranças quando um destes dias fui a Lisboa com a Paula participar num congresso. Numa das pausas para almoço dirigimo-nos a um restaurante da Universidade e, por via da falta de lugares, partilhámos a mesa com uma pessoa desconhecida. Foram minutos dolorosos de silêncio, dolorosos de indiferença, de nada para dizer. Três à mesa e ninguém parecia estar ali ou querer ali estar. Só então percebi o quão íntima é uma refeição. Tudo o que de nós revelamos nos pequenos gestos, nas opções mais insignificantes. Só então percebi que a impessoalidade cresce entre nós por mais que sejamos. Ali estava eu numa urbe de milhões, cercado de semelhantes aos milhares e completamente só numa mesa com três pessoas. Ali se cometera um crime. Ali se assassinara o milagre da refeição. Em nome de quê? Em nome de quê a indiferença? Em nome de quê a impessoalidade? Em nome de quê a solidão? Em nome de que crescimento este definhar das relações humanas? Ainda esbocei um gesto que salvasse o momento:
- Vou buscar cafés, a senhora aceita um café?
- Eu pré-comprei o meu. Obrigada.

E pronto. A tecnologia dos almoços em pé, dos pré-adquiridos, dos pré-comprados, dos pré-pagamentos, aniquilou o meu estender de mão e hoje guardo, para contar aos netos, a história triste do dia em que almocei com uma desconhecida, em que violei a sua intimidade e vi a minha devassada sem saber porquê. É essa a parte que me assusta : três à mesa sem saber porquê!

Beijo,

Mano.

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