O Carro dos Bombeiros

[Uma enigmática campanha anti-terrorista promovida por uma organização desconhecida está a percorrer vários países europeus, incluindo Portugal, através de anúncios publicados em jornais e revistas de grande circulação, mas ninguém sabe quem a financia. O Exército americano prevê manter cerca de cem mil soldados americanos no Iraque até 2006. Jornalistas portugueses ficaram autorizados a acompanhar o Sub-Agrupamento Alfa da GNR para Nasiriyah, Iraque. Carlos Raleiras, repórter da TSF, continua desaparecido e sobre ele pesa um pedido de resgate de 50 mil dólares. O jornalista foi raptado perto da localidade de Marditz, no Sul do Iraque, quando seguia com mais oito enviados para Bassorá. No mesmo ataque foi ferida a tiro a jornalista da SIC Maria João Ruela, que teve que ser operada a uma coxa. Entre 24 de Outubro de 2002 e 24 de Outubro de 2003, os canais generalistas portugueses emitiram 5612 notícias (correspondentes a mais de 219 horas) sobre o "escândalo da Casa Pia", as quais foram vistas por uma audiência média de 8,5% (798 mil indivíduos). Os dados constam do Telenews da MediaMonitor divulgados na mais recente edição da newsletter da Marktest.

[Data da primeira publicação: 28 de Novembro de 2003]

O Carro dos Bombeiros
Querida mana,

É interessante a mente humana. É interessante a lógica torcida, retorcida mas implacável e paradoxalmente correcta como se movimenta e manifesta mesmo quando erra! Frase complexa e complicada esta! Donde vem? Vem de pensamentos ainda mais emaranhados que procurarei desentrançar para ti. Estava aqui a pensar, para te dizer, como as noções de Espaço e Tempo se alteram à medida que crescemos e como isso altera, também a visão que temos do universo que nos rodeia e consequente gestão das nossas atitudes, da construção que fazemos da nossa própria imagem. Não raro surpreendemo-nos a pensar “eu não sou este” ou “eu já não sou este” ou ainda “eu já fui este? Como foi possível?” Estas reflexões não implicam, necessariamente, arrependimentos. Implicam somente mudanças, crescimento. A generosidade com que a Natureza nos presenteia o espírito leva a que os espaços comecem por ser enormes. Qualquer quintal é um bosque, qualquer rua é uma avenida, qualquer casinha humilde e parca de corredores e metros quadrados é um castelo de aventuras. O tempo passa, os olhos abrem-se para o mundo e, curiosamente, começamos a ver menos. Os espaços encolhem-se. Os sonhos entrecortam-se de sobressaltos e obstáculos. Com a ideia do curso do Tempo o fenómeno repete-se. No dealbar da vida os dias são longos, as semanas são extensas e os meses são vidas de histórias para contar, períodos infindáveis de grandes esperas, grandes ansiedades e, claro, sofrimentos incontáveis. Por essa altura, me parece, a nossa mente não alcança um ano no horizonte, daí o desapego material que tanto necessitaremos mais adiante no tempo e que, quase invariavelmente, esqueceremos absortos na prisão das liberdades que chegam com a idade adulta. Isto te escrevo para lembrar contigo como os dias eram longos quando brincávamos no quarto de arrumação. O mundo começava e acabava ali em tardes infindáveis de risos, de brincadeira inocente, de brigas, de corridas, de fazer prendas artesanais para o dia do pai, para o dia da mãe. Foi sentados no chão desse quarto que ensaiámos o crochet de um naperon para a mãe. Era aí que eu alinhava para as corridas os carrinhos de brincar que tinham sobrevivido à guerra colonial e, mais risco menos risco, mais amolgadela menos amolgadela, ainda davam para imaginar correrias. De todos eles, um havia que me entusiasmava mais que os outros. Um havia que eu, o motorista, secretamente e às escondidas de mim mesmo, o juiz da corrida, favorecia com empurrões extra para ganhar: era o carro dos bombeiros. Não é original. Todos os miúdos, um dia, quiseram ser bombeiros. É o dom da dádiva que nasce pujante connosco e que depois deixamos esmorecer à excepção daqueles que mantêm a força e a pureza de coração suficientes para continuarem.

São pessoas de excepção os bombeiros. E são-no, quanto a mim, porque conservam em bruto, pelos anos da vida, a capacidade de dar, o heroísmo intrínseco e anónimo que os caracteriza. Porque envergam uma farda que só tem dois destinos: superar uma dificuldade ou morrer a tentar! É por isso, mana, que me entristece e envergonha quando vejo, nos dias que correm, aparecer uns homenzinhos cinzentos na televisão a atribuir incompetências e culpas aos bombeiros. Onde pára o respeito pela nobreza de quem dá a vida pelos outros? Que incompetência é a dos bombeiros? A incompetência de defender voluntariamente aquilo que não é deles? A incompetência de arriscar a vida? A incompetência de morrer no posto de trabalho? Quantos, mana, desses senhores cinzentos de poder na mão, já morreram no posto de trabalho? É uma pena e uma tristeza que se esteja a matar a nobreza de ser-se bombeiro com a injustiça das palavras mal proferidas, com a cegueira dos interesses económicos. Eu cá gostava de poder acreditar que as crianças, pelo mundo fora, continuam a sentir o peito crescer de emoção e grandiosidade sempre que vêem um carro de bombeiros. Nem que seja de brincar. Nem que seja alinhado para uma corrida num soalho velho de uma casa velha, outrora castelo das nossas brincadeiras no tempo infinito da nossa infância.

Beijo
Mano

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