A Razão

[Como já se suspeitava, confirma-se a existência da doença das vacas loucas também nos E.U.A. Atinge um ponto alto a discussão nos media acerca dos reality shows. Saddam Hussein é capturado e feito prisioneiro.

[Data da primeira publicação: 12 de Dezembro de 2003]

A razão!
Olá mana,

As ruas já se vão iluminando de esperança, o coração pequenino das crianças sente a expectativa e os adultos querem acreditar mais. Interessante este fenómeno que se apodera dos homens quando o Natal se aproxima. Irrompe um inusitado querer dar, um estender de mão aberta ao vizinho de quem se não queria ver a cara. Até mesmo os problemas que continuam a atormentar-nos parecem mais leves, menos presentes, mais fáceis de resolver, menos problemas. As músicas tradicionais espreitam das lojas, invadem as ruas e preenchem os nossos dias deste querer ser melhor que é o melhor do Natal apesar de não se ver. O próprio trato se modifica e as vozes que soltavam os costumeiros e rotinados “bom dia, boa tarde” enchem-se de timbres, pintam-se de sorrisos e articulam cumprimentos mais demorados, mais dedicados:
- Bom dia vizinho, boas festas!
- Feliz Natal!
- Obrigado. Igualmente para si e para os seus.
Há uma inversão espontânea das prioridades do receber e do dar que desenham na alma vontades de dar primeiro. Como é natural, a astúcia dos homens dedica-se a tirar partido do espírito que se instalou, multiplicam-se as campanhas e as artes do comércio apuram-se. Mesmo assim, com o que possam ter de menos nobre porque aproveitador, gosto deste comércio e deste aproveitamento porque me mostra que o capital de dar tem saldo positivo nas humanas intenções.
Daí aos rituais das prendas e dos embrulhos com etiquetas e nomes de destinatário vai um saltinho. E é ver os sorrisos da criançada a iluminar as faces de quem deu porque dar é, ao mesmo tempo, receber. Acredito, até, que há no gesto da dádiva, um regozijo interior de ver receber que é muito semelhante ao receber propriamente dito. E segue-se o jantar dos jantares, as mesas postas com o cuidado de quem veste um fato domingueiro para se apresentar ao Senhor, vozes altas de histórias que marcaram o ano, receitas que marcam a noite. Um estar bem. Um fazer bem. Uma alegria. Uma partilha.
No fundo, mana, os dias de Natal são um pouco como Jesus. Parecem iguais aos outros mas não são. Há neles uma magia que faz apetecer acreditar na Humanidade, há neles uma aura que faz apetecer acreditar que o mundo é um local melhor. Há neles a esperança que faltou nos outros dias do ano. Há neles o gesto que escondemos, o sorriso que evitámos, o crer forte e pujante que foi tímido e encolhido nos outros dias. E porquê? Donde vem este espírito? Qual a sua razão de ser? A razão parece-me estar algures no percurso que precisamos traçar dentro de nós à procura do que de melhor há em nós. A busca desta razão pode bem ser a razão de estarmos vivos, de sermos gente. Pode bem ser o espírito primordial e primitivo que era antes do Homem e que será depois dele. Pode bem ser a força que nos criou e nos anima, o sopro de vida que uma vez por ano emerge da nossa humana pequenez e nos lembra que ficou em nós algo do Criador. Como sempre fica na pintura o olhar de quem a pintou, no poema, o pensamento de quem o pensou, na partitura, a melodia dos passos de quem a ouviu para a dar a ouvir depois. A razão pode bem ser que não sejamos, de vez em quando, tão humanos quanto julgávamos, que se nos desprendam as amarras do ser e busquemos estar mais perto de quem nasceu no Natal. A razão…

Beijo
Mano

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