O ritmo das coisas

[Apesar de muito divulgado na comunicação social, o caso "CAsa Pia" não sofre evoluções significativas.Sinal dos tempos: As marcas TMN e Vodafone posicionaram-se no topo do ranking do investimento em publicidade. Nos EUA, diversos jornais influentes - alguns dos quais apoiantes da guerra no Iraque - têm vindo a questionar a Casa Branca e os serviços secretos norte-americanos, perante a conclusão, que se vai generalizando, de que não existiam armas de destruição maciça no Iraque. Portugal assina o acordo internacional anti-tabagismo (Framework Convention on Tobacco Control). Início da missão do 3º Batalhão de Infantaria Páraquedista na Bósnia-Herzegovina
[Data da primeira publicação: 9 de Janeiro de 2004]

O ritmo das coisas

Olá mana!
Um bom ano te desejo daqui, donde os sentimentos se sentem mais fundo, daqui donde se não pode fingir, donde se não pode enganar o juiz que é a alma, daqui, deste sentir irmão.

Hoje, quando faço estes votos que espero se realizem, envio-os em pensamento a uma irmã mulher, crescida, de responsabilidades imensas e mundo inteiro às costas. Vejo-te na plenitude do teu ser e do teu viver e orgulho-me da obra que o tempo fez. E lembro-me de outros anos terem passado e recuo trinta e tal desses anos no tempo e lembro o tempo em que o tempo não corria como hoje. Hoje, o tempo impressiona-me por ser tão pouco, tão curto. As pessoas correm cada vez mais, cada vez mais atarefadas, para usufruírem cada vez mais do tempo que cada vez menos têm e de que cada vez menos usufruem. Todos querem poupar tempo mas o intento parece nunca ser alcançado porque todos se queixam sempre de o não terem. Um ano como aquele que acabou ainda agora para todos nós ou como aquele que agora desponta parece ser incrivelmente mais célere, mais efémero, menos tempo, menos ano. Nos anos em que inauguraste o ser, arriscaste os primeiros passos ou estreaste as primeiras palavras a vida parecia mais lenta, mais calma e mais vivida. Os anos eram eternos. Por essa altura um automóvel que conseguisse a marca impensável dos 120 km/hora era uma máquina extraordinária. Na generalidade, 80 km/hora era já a fronteira do risco desnecessário. Daí que as viagens fossem mais longas e as distâncias parecessem maiores. Um simples Coimbra – Lisboa, que tanta vez fizemos, era obra para quatro a seis horas correndo as coisas bem. Uma carta em correio normal, que o não havia ainda às cores, percorria entre o dedicado remetente e o ansioso destinatário oito dias úteis, no mínimo e sem atrasos. Às vezes ainda sorrio ao lembrar-me do meu primeiro bilhete de identidade, a eternidade que esperei por ele: trinta dias inteiros. Um bolo, por exemplo, era tarefa para uma manhã ou uma tarde. Nos dias que correm qualquer pré-pré-pré-feito, em indo ao micro-ondas cinco minutos, está prontinho. E uma gravidez? Como quando a mãe e eu e o pai esperámos por ti… eram nove meses inteiros! Nove longos meses de esperar pelo primeiro pontapé, de pensar os nomes todos para escolher o melhor que o era só por ser teu! Hoje já nenhuma gravidez dura nove meses. Vemos a futura mãe uma ou duas vezes e, à terceira, ou a vemos com a criança ao colo ou esbarramos com o pai sorridente a dizer que a menina tem três meses e já quer agarrar as coisas. Às vezes parece-me, sinceramente, que o tempo vem em pastilhas compactas e gasta-se numa noite de frente para a televisão.
Sabes, manucha, a acreditar no que vão dizendo os cientistas na televisão, no que leio nos Atlas e outros livros da especialidade e até, porque não, no meu relógio de mesa-de-cabeceira, o tempo dura o mesmo tempo, hoje, que durava quando vieste ao mundo! O problema não me parece residir na passagem do tempo que se rege pelos movimentos dos celestes astros e esses, que eu saiba, pouco se ralam se nós contamos com mais ou menos precisão e paciência a forma como sempre se movimentaram, movimentam e hão-se continuar a movimentar. O problema reside no ritmo das coisas. Na forma como os meios de comunicação enfatizam a informação, na forma como compactam os anos em 3 minutos de bons momentos, maus momentos, quedas de motocicletas, desastres de automóvel, golos memoráveis, recordes impressionantes, catástrofes naturais, homens importantes em tribunais. O problema reside na forma como dependemos do relógio para deixar a criança em casa dos pais, no infantário, trabalhar à pressa, almoçar à pressa, ir buscar as crianças à pressa… tudo à pressa. O problema reside na forma como, pela facilidade do consumismo e pela facilidade do conforto, deixamos de estar uns com os outros, nos vemos menos, conversamos menos, temos menos histórias e, claro, vivemos menos embora, segundo as apuradas médias internacionais, passemos mais tempo vivos. Não sei que ilusão de rapidez é esta que nos leva a ser atraídos pela vertigem do Já em detrimento do apuramento do Durante. Somos, definitivamente, uma sociedade de produtos e, contudo, a vida é um conjunto de processos, é, ela própria, um processo.

E no atropelo de corrermos a vida em vez de a vivermos, atropelamos a calma das coisas, atropelamos o tempo que é preciso dar ao tempo, atropelamos as ideias, os conceitos, os valores. Tudo o que exija um processo é atropelado por aquilo que apresente um produto. E depois admiramo-nos com o pessimismo com que se encara este tão novo e já tão condenado 2004. Ele é o pessimismo em torno da economia, ele é o pessimismo em torno do desemprego, ele é o pessimismo em torno da pedofilia, ele é o pessimismo nacional, o europeu e o transcontinental… e bastava que, em vez de corrermos, parássemos para olhar, para mostrar atenção, para vigiar, para cuidar e conversar…

Por isso, mana, te não desejo que este novo ano seja um ano de paz, saúde, alegria e sucesso. Vou desejar-te, antes, que este ano seja um ano em que inicies e desenvolvas processos e projectos de paz, de saúde, de alegria e de sucesso. Em lume brando, ao ritmo das coisas!

Beijo
Mano.

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