[Data da primeira publicação: 31 de Dezembro de 2004]
Falta de Originalidade Recomendável
Querida mana,
Nem mesmo no dia de todos os descansos, nem mesmo no dia em que quase toda a humanidade pára para se olhar eu deixo de escrever-te. Hoje são 24. Hoje cairá a noite das noites no primeiro de todos os jantares. Sinto encher-me a alma uma vontade indomável de fazer bem, de ser melhor. Um impulso de procurar os que necessitam de água e dar-lha a beber, de encontrar os que clamam por alimento e dar-lho a comer. Sinto encher-se-me o peito de vontades inusitadas de cantar e fazê-lo só por isso. Apetece-me sair para a rua e cumprimentar os anónimos todos, distribuir apertos de mão, abraços e sorrisos pela medida do excesso de dar.
Hoje ouço as músicas que já todos conhecemos e pouco me importa quem as canta, como as canta, quem as publica ou quanto custaram os cd’s onde estão registadas. Interessa-me só que estejam no ar. Hoje todas as piadas têm graça e todas as pessoas são bem intencionadas. Hoje não vejo semblantes carregados porque não consigo.
Querida mana,
Nem mesmo no dia de todos os descansos, nem mesmo no dia em que quase toda a humanidade pára para se olhar eu deixo de escrever-te. Hoje são 24. Hoje cairá a noite das noites no primeiro de todos os jantares. Sinto encher-me a alma uma vontade indomável de fazer bem, de ser melhor. Um impulso de procurar os que necessitam de água e dar-lha a beber, de encontrar os que clamam por alimento e dar-lho a comer. Sinto encher-se-me o peito de vontades inusitadas de cantar e fazê-lo só por isso. Apetece-me sair para a rua e cumprimentar os anónimos todos, distribuir apertos de mão, abraços e sorrisos pela medida do excesso de dar.
Hoje ouço as músicas que já todos conhecemos e pouco me importa quem as canta, como as canta, quem as publica ou quanto custaram os cd’s onde estão registadas. Interessa-me só que estejam no ar. Hoje todas as piadas têm graça e todas as pessoas são bem intencionadas. Hoje não vejo semblantes carregados porque não consigo.
Um dia destes assisti, com tristeza no olhar e escuridão na alma, a uma entrevista em que uma jornalista, no papel de interrogada, afirmava convicta das suas convicções, sólida nas suas posições, que não dava prendas para não alimentar a máquina consumista. E pensei nas suas razões. Pensei que a azáfama das compras pode ser só uma moda, pode ser só a consequência da monopolização de mercados e da manipulação de mentalidades. E pensei, também, que pode ser tudo o que quisermos, tudo o que sentirmos. Pensei que pode ter os significados todos que lhe imputarmos com a intenção do gesto de dar. A jornalista, mana, não tinha razão. Pior do que a moda de consumir para dar, é a moda da indiferença. A moda do comodismo racionalizado e solidamente assente e justificado nas razões que encontrámos para nos desculpar do acto de dar. Essa moda, eu não quero. Prefiro a recomendável falta de originalidade da elaboração da lista dos presenteados, do adivinhar do que gostariam, do tentar surpreender, da ginástica entre o que se quer dar e o que se pode dar no jogo do manuseio doméstico dos euros e dos dias do mês. Prefiro o sacrifício de enfrentar as multidões, prefiro oferecer um objecto que, como dizia a jornalista, não vai servir para nada, mas que oficiou o meu gesto de reconhecimento, de dádiva, de partilha, que fez de mim um homem melhor, mais em paz com a sua consciência e que, possivelmente e apesar da sua inutilidade futura, teve ali, por breves instantes, o poder miraculoso de arrancar um sorriso a uma pessoa que me é querida.
Não quero a originalidade crua e indiferente de virar as costas a um passado de tradições que representam o melhor que há na nossa envelhecida humanidade. Quero reviver e reavivar sempre esse inexplicável impulso que toca os homens e por breves dias, momentos especiais, nos faz ser melhor, traçar pontes e pontos de união, nos levanta os olhos à procura da estrela envoltos de pensamentos e sentimentos que, por instantes, se irmanam com aqueles que impeliram Baltasar e os companheiros na busca de um menino…
Quero, mana, o consumismo absoluto e sôfrego desse espírito a que chamámos natalício seja no abraço que vou dar-te daqui a minutos quando chegares para estarmos juntos, seja no brilho que me iluminou o olhar quando retirei da prateleira de uma superfície comercial a lembrança que escolhi para ti! O mundo continuará a rodar, os hipermercados passarão de moda, a jornalista não resistirá aos anos passados, eu também não. Contudo, desconfio que o espírito permanecerá sejam quais forem as circunstâncias que orientem as coordenadas da humana condição.
Feliz Natal, mana, agora e mais logo, também, quando abrires o teu presente.
Beijo
Mano.