Não sou um construtor desta modernidade

[Assinatura de acordo relativo à Constituição de um Mercado Ibérico da Energia Eléctrica. 8ª Conferência Nacional de Ambiente - Centro Cultural de Belém - Portugal. Morte do poeta português José Maria Machado de Araújo. Timor-Leste torna-se membro do International Finance Corporation - IFC.

[Data da primeira publicação: 22 de Outubro de 2004]

Não sou um construtor desta modernidade

Querida mana,

As palavras que te escrevo hoje têm a intitulá-las uma frase que assume foros de anacronismo a desafiar a contradição. Tentarei deixar-te marcado na alma o percurso que me levou a tal síntese. Tentarei que percebas as voltas que levam um homem do seu tempo a negar a sua construção. O natural é sermos todos construtores de tudo o que nos rodeia. Activa ou passivamente, bem entendido.

Quando a memória me deixa, vagueio pelos tempos passados à procura, neles, das coisas, dos pensamentos, dos sentimentos e das atitudes que mais sentido fizeram como que a pedir-lhes reedição para este presente que vivemos. O tempo é nosso. Usamo-lo como queremos. Até me espanta que se gaste por esse mundo fora tanta verba em investigação sobre máquinas de viajar no tempo quando a melhor delas tem-na cada um de nós nesse precioso acervo que o cérebro vai coleccionando do quotidiano que hoje é e amanhã foi!

Em São Pedro d’Alva não havia dias amenos. Ou as manhãs acordavam frias de deixar a roupa hirta de gelo nas cordas de estender depois de noites que cobertor algum conseguia aquecer, ou o sol despontava forte a queimar, a pedir águas para as sedes, sombras densas para os calores. E foi debaixo de um sol assim que o nosso avô se sentou num banco à porta da loja tantas vezes que parece que ainda o lá vejo quando por lá passo. Os homens passavam, entravam ou não, mas saudavam-no sempre. Ali, o tempo tinha tempo. Por vezes, como que a desafiar a monotonia da tranquilidade, dos dias sem surpresas, os homens demoravam-se um pouco mais. Falavam do clima, contavam das eiras, dos valados, dos pinheiros, das batatas, da vinha, como se falassem de filhos pequenos a crescer. E por vezes, também, a criar uma nota diferente na conversa, surgiam frases atiradas ao vento e aos ouvidos como quem lança uma sorte, desafia um destino: “aquelas terras ali abaixo daquilo do compadre Celestino eram boas para o compadre…” Não eram precisas mais palavras que outras tantas como estas: “eram sim senhor, e quanto quer vossemecê por elas?” Ajustava-se a verba e sem mais palavras nem papéis que aquelas que haviam sido ditas nem mais garantias que “ser eu quem sou e vossemecê quem é” o negócio fechava-se digno e justo na confiança dos homens.

São estes gestos simples mas absolutos, de uma integridade a desafiar futuros incertos, de uma honestidade de homens rectos, erguidos na vida do chão ao céu, com o corpo maltratado, mas a face limpa, que vão escasseando e fazendo falta à nossa modernidade.

Entristeço-me, hoje, com a poeira que as palavras levantam a tentar ocultar verdades que se não podem esconder porque estão à vista de todos. Entristeço-me com os atletas olímpicos que tomam substâncias dopantes, dizem que as não tomam e vêm depois pedir desculpas por tê-las tomado! Entristeço-me com as mães que lastimam os filhos raptados que elas próprias, afinal, haviam subtraído à vida! Entristeço-me com os políticos que ontem tinham provas inequívocas da existência de armas que hoje sabem nunca ter tido a certeza de existirem. Choca-me a impunidade de tudo isto mas, sobretudo, magoa-me a forma como se maltrata a dignidade humana. Magoa-me a leviandade com que se vive com duas caras. Magoa-me o coração de pai, a facilidade com que se mal educam os nossos jovens. A palavra dita não vale muito. A palavra, mesmo escrita, vale muito pouco! O que hoje se diz amanhã se nega. Vivem-se os materialismos e os interesses inerentes e esquecem-se os princípios que deveriam reger as relações entre os homens.

É neste sentido, mana, que não quero ser um construtor desta modernidade. Prefiro erguer a face, o corpo e o carácter e fazê-los fustigar, erectos, pela imoralidade que graça, do que ceder aos jogos de palavras, aos arranjinhos, ao diz que não disse… prefiro um gesto verdadeiro que doa do que um sorriso meigo sem verdade nem dor.

Este homem que sou veio ao mundo pelas mãos honestas de seus avôs, de seu pai e, mais tarde, de seu sogro. Este homem que sou não quer esta modernidade para si. Não é esta a herança que quero deixar ao meu filho. Este homem que sou há-de viver a sua honestidade, há-de sofrê-la, morrer com ela seja qual for a face da modernidade.

Espero só que, enquanto vivo os meus dias, consiga fecundar no carácter do meu filho e dos jovens que me passam pelas carteiras da escola umas quantas sementinhas de verdade e de integridade a ver se amanhã a modernidade é outra!

Beijo,
Mano

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