A professora Cilita

[Durão Barroso aceita ser presidente da Comissão Europeia e é substituído por Santana Lopes no Executivo. O Prtesidente da República, Jorge Sampaio, dissolve o Governo e convoca eleições antecipadas. Realiza-se o XXVI Congresso do Partido Social Democrata - PSD (Barcelos). Tem Início o julgamento do processo de pedofilia na Casa Pia de Lisboa. XVII Congresso do Partido Comunista Português (Almada).

[Data da primeira publicação: 5 de Novembro de 2004]

A professora Cilita
Querida mana,

A vida tem destas coisas. Institui em algumas pessoas e no percurso que traçam certo estatuto que escapa à quadrícula mesquinha dos impressos onde, por razões diversas, vamos deixando o rasto da vida: nome, profissão, número do bilhete de identidade. Umas ficam marcadas pela alcunha que descreve em poucas palavras toda uma vida e, às vezes, a vida dos antepassados também. Toino Manso, Manel Carrapicho, Quim Meia-Leca, Baltasar Sete-sóis, a menina Augusta, que foi menina até aos seus noventa e sete garbosos anos, altura em que combinou com o Senhor que já chegava e, claro, a Zefa da rua de cima, a Laurinda das lãs e a Clarinha do Felisberto que tentou, em vão, ser Clara como gostava e queria. Outras, marcadas ficaram por essa segunda pele que é o ofício, o labor do quotidiano e a responsabilidade de dar a cara por cumpri-la substitui-se à pessoa que lê, que cozinha, que ri, que chora, que ama, que cria os filhos, que vive e morre sem direito ao nome que lhe puseram, bonito ou feio não vem ao caso. O que importa são as frases que ficaram no ar a vestir a identidade dos humanos que, por vontade própria ou não, se rouparam com elas: “Telefonas ao canalizador?”, “Falaste com o empreiteiro?”, “Passas no sapateiro?”, “Hoje tive de enfrentar o gerente…”, “a senhora professora dá licença?”

E chegados aqui à senhora professora, fico a ver, na segunda carteira da fila da janela, um miúdo de olhar posto no entusiasmo da vida a sorver as palavras de encanto e magia que a professora Cilita tem para revelar. Nunca soube, como não sei hoje, o nome da minha professora da primeira classe e, contudo, marcou-me os dias de crescer devagarinho com as primeiras letras lidas, os primeiros traços atabalhoados de escrita. Uma carreirinha de as, uma carreirinha de bês, “vá lá, não te esqueças: para cima, para baixo, mais um pouquinho para cima e agora a perninha, isso, vês que bem…” Revelou-me o mundo mágico das histórias e um dia ofereceu-me um livro. Que milagre aquele. Um livro inteiro só para mim, dado pela minha professora…
Na comunidade em que vivíamos poucos saberiam, à excepção da família porque lho puseram, o nome da professora Cilita. Professora não era nome. Cilita era meio nome ou um nome a fazer de conta de outro nome. A expressão junta, professora Cilita, era uma alegria de ir pela manhã de pasta às costas, era um respeito de tratá-la como aos próprios pais, era o poder mágico e inimaginável de ver o giz desenhar milagres no quadro negro. Era o mundo pela frente nas mãos de uma voz suave e firme, de uma bata branca a cheirar a aprender, de um olhar que dizia, a cada momento “vai, aprende e toma o mundo que é já teu ainda que o não saibas…”
Esta autoridade natural, este respeito pela figura do professor, este acreditar tranquilo na transmissão do saber e do universo de geração em geração foi sendo conquistado pelas modernas teorias do ensino, da aprendizagem e da aprendizagem da aprendizagem. Da professora Cilita, entretanto desactualizada, jubilada pela idade, fica só a memória. O presente é que sim, é que está bem, é que ensina. Se não vejamos: para começar, o ano lectivo acaba muito mais tarde e começa muito mais cedo! Logo, o tempo de aprendizagem é maior! A coisa vai até Julho com uns a acabar e outros a continuar como convém à tranquilidade e à especificidade do clima mediterrânico! E começa logo em Setembro, sem tempo a perder. Aliás, para que precisam as famílias de férias em Setembro se tudo enlatadinho em Agosto faz muito mais jeito às carreiras turísticas formatadas pelas agências? Brincar não serve, a brincar não se aprende. De resto, quem é que guardava as crianças? Onde é que as enfiávamos? Depois, bem, depois, os professores são electronicamente colocados e claro que o computador adivinha com a exactidão de quem não sabe o que é errar qual a especificidade humana mais compatível com as características de certa região, determinada população. Por isso estão os de Bragança em Faro e vice-versa! Mas há mais. Vêm aí as novas tecnologias e anunciam-se os tempos em que um bom orador pode facilmente ser substituído por um monitor e duas colunas de som. Em que um conselho, um olhar, uma intuição, uma metodologia e um acompanhar como quem embala serão substituídos pela voz metálica das instruções multimédia! Repara mana, repara bem, o professor continua lá: estuda as metodologias, passa-as aos técnicos que as colocam nos cd’s e na web que são vendidos aos alunos que lêem os professores em diferido, assim é que é: futuro a valer!
Faz-me falta, mana, a tranquilidade de ser professor. A naturalidade de ensinar, a força de não ter vergonha de transmitir conhecimentos, esse pecado pedagógico com que andámos anos a fio a traumatizar as criancinhas! Esse pecado com que me mutilou a alma a professora Cilita. Mutilada está, sim, de saudade…

Beijo,
Mano

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