A Joana e a Carmo são

[Durão Barroso aceita ser presidente da Comissão Europeia e é substituído por Santana Lopes no Executivo. O Prtesidente da República, Jorge Sampaio, dissolve o Governo e convoca eleições antecipadas. Realiza-se o XXVI Congresso do Partido Social Democrata - PSD (Barcelos). Tem Início o julgamento do processo de pedofilia na Casa Pia de Lisboa. XVII Congresso do Partido Comunista Português (Almada).

[Data da primeira publicação: 19 de Novembro de 2004]

A Joana e a Carmo são

Querida mana,

À medida que os anos passam e se alonga e expande a teia de memórias que me faz homem e à medida em que os pratos da balança em que colocamos a vida vivida e a vida por viver se vão aproximando até trocarem, inexoravelmente, as posições originais alteram-se-me na alma as perspectivas do mundo ou, quem sabe, altera-se o próprio mundo. Quando era pequenito e passeava contigo no carrinho de bebé rua abaixo, rua acima, perguntei, certa vez, à mãe o que é que o papá era… é exactamente aqui que quero parar para reflectir contigo. O verbo, à altura, altura de anos poucos e verdes não foi reflectido, foi intuído pela intuição que nos traz o senso comum, a vida que nos rodeia. Lembro agora o quotidiano de então, os amigos, as conversas dos adultos e sempre que encontro na memória alguém a perguntar a alguém qual o seu trabalho, encontro este perturbante verbo ser. As pessoas de então não faziam para ser, eram para fazer. Era-se professor, era-se camionista, era-se engenheiro, era-se pedreiro, era-se médico, era-se empregado de balcão e devido ao que se era fazia-se o que se devia. A profissão instituía-se, nas diversas áreas, com foros de vocação de ser para uma vida inteira, pressupunha um indagar interior, um descobrir das capacidades, das tendências e exigia a dedicação de ser-se o que se tinha escolhido para sempre. Excepções à parte, que as há-de haver sempre, os profissionais tinham esta peculiar e inusitada característica: eram o que escolhiam ser, eram uma profissão, só uma, eram-no para sempre. Conheci mesmo pessoas que, aos cinquenta ou sessenta anos tinham sido aquela escolha sempre e só!

O pai foi comerciante, o senhor Sá foi alfaiate, a Nô foi médica, a Paula David foi professora.
Foi-me a memória remexer o sótão das ideias e levantar a poeira dos tempos porque tenho reparado nas mudanças que estas coisas sofreram. Hoje não se pergunta às pessoas o que elas são, pergunta-se o que elas fazem: “dou aulas”, “faço projectos para a Câmara Municipal”, “atendo ao balcão”, “dou serventia”, “arranco dentes”, “faço próteses”, um sem número de coisas que toda a gente faz ninguém é…

Talvez seja altura de nos perguntarmos como veio isto a ser assim. Talvez que a sociedade tão afanosamente construída e alicerçada em princípios de pluralidade cultural, princípios de economia global, princípios de generalização universal, tenha esquecido a especificidade dos povos e, claro, das gentes. Decorre daí que, ao formarmos os jovens, ao apontarmos as saídas do presente e as entradas do futuro, não estejamos a induzir essa tão básica mas tão fundamental questão posta por um grego antigo, velho e desactualizado já só visto na secção dos bustos alvos dos museus ou nas páginas esquecidas de livros da especialidade: conhece-te a ti próprio. E a formação dos homens e das mulheres que hão-de tomar conta do nosso mundo assenta em profissionais que o vieram a ser com base em questões intrigantes e perturbantes: “Que saída tem este curso? Dá emprego?”, “O que é que eu posso fazer que chegue para um apartamento e um carro?”, “Quanto ganha um…?” “Em que universidade é que há este curso? A que distância fica ela? Quanto custam as propinas?”

Talvez por isto, a maioria dos jovens chega aos vinte e muitos anos e ainda não é nada mas já fez muita coisa. Contudo, trazem nos olhos a insegurança, a incerteza e ainda não tiveram tempo nem oportunidade para ter a coragem de perguntar o que sou eu?, que quero eu de mim?, da vida?

Por isso te escrevo hoje sobre duas jovens que conheci, acabadinhas de formar: a Carmo e a Joana. Terminava o século vinte, abriam-se os portões sombrios da crise com que se inaugurou o século vinte e um e elas foram para artes. Formaram-se em pintura! Assim, sem mais nem menos, em pintura. E sabiam que não teriam emprego, e sabiam que percorreriam o calvário, que tu própria trilhaste, dos centros de emprego, dos curricula, das cartas de apresentação, e sabiam que a resposta seria um não rotundo e invariável, mas assumiram a coragem de ser e não o imediatismo de fazer! E onde vivem a Carmo e a Joana? Vivem num país que se queixa de falta de mão-de-obra especializada, de falta de formação, de falta de educação, de crise cultural, de crise de identidade, vivem nesse mesmo país que rejeita e atira para as malhas do desemprego e do desânimo as pessoas que tiveram a coragem de aprender e que podiam proporcionar-nos tudo o que nos faz falta. Vivem num país que se lamenta da falta de essência e atira a essência para a valeta da negação e do insucesso.

Aprender, em Portugal, mana, é uma coisa muito perigosa. Perigosa ao ponto de poder dedicar-se uma vida a aprender e depois levar-se com rótulo de inútil e incapaz para a moderna sociedade das tecnologias, da informação, da comunicação, das skills, das visibilidades, das quintas, das celebridades, da negação da essência. Mas tenho esperança em Portugal, mana, enquanto houver uma Joana e uma Carmo que, como tu, teimosa e obstinadamente teimem em ser!

Beijo,
Mano

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