Um homem no mundo

[Presidente Jorge Sampaio (Portugal) aceita a demissão do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Presidente Jorge Sampaio (Portugal) convoca eleições para 20/02/2005. Terremoto de 5,4 graus na escala Richter atinge o cabo de São Vicente. Eleições presidenciais e parlamentares em Moçambique.

[Data da primeira publicação: 3 de Dezembro de 2004]

Um homem no mundo

Querida mana,

Há homens que vivem a vida que os escolheu.
Há homens que nunca chegam a saber que estiveram vivos.
Há homens que passam ao lado da vida empunhando bandeiras de nada e ideais que nunca o foram de tão vazios.
Há homens que vivem perdidos porque já nasceram perdidos na imensidão humana de um universo que os assusta e os apouca como se a mesquinhez do universo fosse grande.
Há homens que tentam ávidos ou desesperados a dignidade e procuram-na, diligentes, por todo o lado menos por onde se pode encontrar a dignidade.
Há homens que se enganam a vida julgando enganá-la.

E há o nosso avô. Esse colosso de existir que sepultámos há poucos dias. Essa perda para o mundo mais do que para ele.

O nosso avô Velez caracteriza-se facilmente. Um corpo imenso como convém para abrigar uma alma também ela imensa. Um corpo de enfrentar as agruras, de segurar as investidas que os cornos da vida fizeram numa geração que sofreu tudo o que havia para sofrer. Um homem de encher uma sala de risos ou lágrimas que ele próprio derramava numa antítese figura-corpo para quem o não conhecesse mas, digam o que disserem, a fazer todo o sentido para quem cresceu à sua beira. Um homem cuja primeira palavra era honra e a última também. Um carinho a brotar de um corpo imenso no elogio dos netos, das filhas, do mundo que o rodeava. Um dinamismo de querer viver a vida toda de uma vez na avidez de segurar cada momento. Uma presença inigualável. Uma saudade que magoa mas adocica a memória de lembrar o que vivemos com ele.

O avô Velez tinha duas características e lembro-me do o ver viver sempre de peito erguido para a vida empunhando-as como a lemas, como espadas de defender-se, como a lemes de conduzir-se, de conduzir quem o acompanhava. Uma era a força das suas virtudes. Irrompia com ela pela vida de quem se cruzasse. Desempanava automóveis na beira da estrada, dava boleias a quem já se cansara de esperar, distribuía o que tinha como se tivesse muito e, por vezes, pouco era. Distribuía alegria como quem dá tudo o que tem: o dom de viver a vida sempre pelo lado do sol… uma só palavra, uma só honestidade, uma só cara, uma só seriedade e, com elas, a força de encarar o mundo e o que ele trouxesse. A outra característica era a coragem dos seus defeitos. Assumia-os como quem dá a cara a ver se dói. Assumia-os como que para garantir a sua humanidade e nunca se escondeu deles, nem os ocultou de quem tinha o privilégio da sua companhia. E era neste tactear de defeitos e virtudes que nos mostrava como vive um homem no mundo.

O que mais aprecio no homem que agora nos deixa saudade é um aspecto que me parece um tanto esquecido por quem quer ser homem nos nossos dias: a integridade e a verticalidade. Um homem que nunca fugiu do seu mundo mas o encarou, o trabalhou, o amou e por fim, o deixou com a serenidade de que só os heróis são capazes quando enfrentam a negra e derradeira inimiga.

Paz à sua alma.

Beijo,
Mano

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