O prémio da Gigi

[José Sócrates assume o cargo de primeiro-ministro de Portugal. Pedro Miguel Santana Lopes assume a Presidência da Câmara Municipal de Lisboa. O primeiro-ministro José Sócrates (Portugal) apresenta programa de governo. Portugal ratifica a European Landscape Convention.

[Data da primeira publicação: 4 de Março de 2005]


O prémio da Gigi

Querida mana,

A capacidade de viajar no tempo, assunto há muito debatido por cientistas e explorado por romancistas e cineastas, está ao alcance da memória de qualquer um. Viajava pelos dias primeiros da minha existência em busca de uma memória libertadora, algo que instigasse a reflexão, o sorriso e, porque não, a lágrima.

E aconteceu-me um fenómeno interessante. Fui para trás no tempo mais do que minha memória permitiria, consegui uma viajem catapultada pela convivência com esse ser extraordinário de generosidade e amor que é a nossa tia Geralda, à altura, infantil e carinhosamente tratada por Gigi que Geralda eram sílabas a mais para quem articulava as primeiras palavras. Como é que se deu tão peculiar viagem, com o me lembro de coisas que estão para lá do que consigo lembrar? Lembrar, não lembro. A minha mente vai só até à história que a Gigi contava. A história, essa sim, remonta a tempos que me estão difusos na neblina que tomba sobre o olhar do passado. Confiaremos, por isso, na tia Geralda que relatava, vezes sem conta, os dias que me tratara das fraldas, os passeios que dera comigo pelas ruas da cidade, exibindo o menino mais recente da família até chegar ao momento em que mostrava a recompensa que por tudo isso recebera. Levantava o dedo indicador e mostrava, bem visível, certa cicatriz que os meus dentes jovens lá deixaram… e terminava sempre comentando a firmeza com que eu fincara os dentes parecendo não querer largar a presa do momento. O que sempre me impressionou naquela cicatriz que o tempo foi tratando com dificuldade foi o facto de nunca ter sido realmente uma cicatriz mas mais um prémio de quem ama e dá só por dar e amar… Impressionou-me sempre o orgulho com que a nossa tia exibia todos os momentos que tínhamos vivido juntos mesmo que deles emergissem as coisas menos boas que a vida pode trazer.

E fiquei, assim, lembrando as minhas memórias e as memórias da Gigi que via nas feridas do tempo os prémios da vida. E fiquei, assim, pensando, como os educadores de hoje e os psicólogos e os pedagogos e os pais e os tios vão vendo estigmas de violência e agressividade onde a Gigi via amor e carinho. E lembrei-me de que queria dizer-te como seria bom que o nosso mundo estivesse mais polvilhado de tias assim, de mulheres que conseguem ver o amor mesmo onde parece que não está. A nossa tia tem crescido e envelhecido dando e amando como deveriam ter sido sempre os gestos de dar e amar: sem nunca esperar nada em troca, sem nunca conhecer os limites de dar e amar porque não têm limites, assumindo sempre o seu dar e o seu amar como prémios de vida de si para consigo…

E veio-me à memória um outro momento. Um momento em que cantámos toda a tarde uma cantiga que ela me estava ensinando. Um momento, mais, de dar desmesurado, de paciência infinita e dedicação total tão próprios da nossa tia: ela entoava a letra num ritmo suave e jocoso. Esperava que eu a aprendesse para a vida. E aprendi! Tal foi a lição de música, tal foi a convicção no ensinar que ainda hoje sou capaz de entoá-la de novo, e faço-o quase todos os dias…
2 x 1… 2
2 x 2 …4
2 x 3 …6

- Vá lá, filho, agora salteado… 2 x 4 … 8
2 x 3 … 6

E agora que o tempo passou e as máquinas de calcular querem fazer as contas todas eu ainda vou exibindo com orgulho esta canção de tabuada que numa tarde só a minha tia me ensinou enquanto brilhava ao sol certa cicatriz que o tempo ainda não apagou…

Beijo grande
Mano

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