O convite

[A TAP Air Portugal apresenta sua nova imagem corporativa. Morte de Lúcia de Jesus dos Santos (última pastora que viu a Virgem Maria em Fátima). Eleições legislativas em Portugal (vitória do Partido Socialista).Fundação da Sociedade Portuguesa para o Desenvolvimento da Educação e do Turismo Ambientais.

[Data da primeira publicação: 4 de Fevereiro de 2005]

O convite

Querida mana,

Não me surpreende, já o correr do tempo, a sucessão dos dias, a humana indiferença no atropelo quotidiano dos valores que deveríamos preservar. Não me surpreendem as grandes imoralidades, nem as grandes ofensas, não me surpreendem, também, os grandes gestos e as mais nobres atitudes. Nos dias que vão correndo, aqui sentado de frente para estas árvores que me cercam, a humanidade tem-me banalizado a grandiosidade e, por isso mesmo, as mentes mais despertas acordam para as pequenas coisas, os gestos mais insignificantes, as palavras mais simples. E tanto querer o grandioso, o Homem acaba idolatrando aquilo que primeiro ignorara: a autenticidade das coisas simples.
É precisamente de um gesto simples que venho falar-te.

É precisamente de um gesto simples que venho falar-te. Um gesto revestido de uma singela autenticidade, a marcar-me a alma, a deixar-me pensando nas horas que se seguiram e a multiplicar consequências e entrelaçados pensamentos que tentarei explicar-te em palavras poucas para o que senti. Um gesto que me chegou marcado por uma enternecedora singeleza mas que viria, em poucas horas, a assumir contornos de grandiosidade imensa no mundo de coisas a que este teu mano vai chamando seu.
Há pouco dias, o nosso primo Carlos passou cá por casa e convidou-me para seu padrinho de casamento. Senti a responsabilidade e senti, também a alegria de quem é eleito, considerado, amado. Como calculas, o facto só por si bastaria para me deixar radiante. A possibilidade de apadrinhar a felicidade daqueles que amamos é uma dádiva, é uma alegria pouco comum. Estarmos vivos e testemunharmos o crescimento daqueles que queríamos ver crescer, a felicidade daqueles que queríamos ver felizes é razão grande de despertar as emoções boas desta vida.

Houve, no entanto, na formulação daquele convite, algo que o viria a tornar ainda mais singular, uma realização do curso da vida que eu não esperava tão cedo. A certa altura ele terá articulado qualquer coisa como “o teu pai e a tua mãe são os meus padrinhos de baptismo, como o teu pai já cá não está, gostava que fosses tu o meu padrinho de casamento”

Foi aqui que vi o filme todo da existência humana. As sementinhas a germinarem em plantas que dão flor donde nasce o fruto feito vida que se come e se rejeita o caroço, quem sabe, se joga porta fora para ficar apodrecendo no chão onde estarão, também as sementinhas que reiniciarão o ciclo interminável da existência de todas as coisas. Alguém tinha pensado que eu podia estar no lugar do meu pai, do nosso pai. No lugar do homem que amámos e continuamos a amar, do homem que tinha o mundo nas mãos para no-lo dar, aquele de quem as nossas vidas dependeram durante tanto tempo, do homem por nós, em primeiro lugar, considerado insubstituível.

É bem verdade que estas coisas geram sentimentos contrários. Por um lado senti que, de alguma forma, a idade me estava chegando, as gerações se estavam passando e estes cabelos brancos e também a falta deles tinham agora a confirmá-los um convite para padrinho de casamento. Por outro lado, alegrou-me, mais do que isso, honrou-me a naturalidade e a simplicidade com que o Carlitos pensou que eu poderia assumir o que o nosso pai já não pode.

E ficaram para trás as grandes questões da actualidade, as grandes campanhas políticas, as grandes coisas da humanidade ficaram pequeninas à medida que a minha alma crescia e se aproximava do nosso pai pelos caminhos mais estranhos. Senti-me como a sementinha que vai gerar planta mas, curiosamente, esta sementinha sabia que houvera antes uma árvore frondosa e forte naquele local. Quase fui o poeta que queria ser a ceifeira e ter a consciência disso… e eu tinha a consciência que faltara ao poeta. Resta-me, agora, cumprir para com a família tal como faria o nosso pai. Tanto esforço gasto para perceber os males da nossa sociedade e encontrar-lhes o remédio e a resposta, a milagreira solução que se busca está mesmo à nossa frente: apostar inequivocamente nessa teia de relações, de sentimentos, de amores e ódios, de aproximações e afastamentos a que, consensualmente, chamamos família. Vê, mana, as voltas que um homem dá por causa de convite tão singelo, tão singelamente feito, tão sublimemente formulado.

Beijo
Mano.

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