Amor em mangas de camisa

[José Sócrates assume o cargo de primeiro-ministro de Portugal. Pedro Miguel Santana Lopes assume a Presidência da Câmara Municipal de Lisboa. O primeiro-ministro José Sócrates (Portugal) apresenta programa de governo. Portugal ratifica a European Landscape Convention.

[Data da primeira publicação: 18 de Março de 2005]

Amor em mangas de camisa

Querida mana,

Acordem os dias com sol radioso a inventar aventuras de vida na alma dos mortais, nasçam eles com a neblina que nunca mais traz o rei de volta, nasçam frios a exigir roupas de tolher os movimentos, nasçam quentes a prometer ao corpo liberdades de exprimir-se, a verdade é que têm de nascer sempre e com eles nascemos nós, repetidamente, para mais uma corrida de viver. Gosto de pensar que o gesto simples de acordar, pouco alvo de reflexões muito aturadas, é como que um renascer constante da nossa alma, um reavivar das nossas esperanças, um pensar que temos mais esta oportunidade. Daí que tenhamos, ao longo dos séculos, instaurado pequenos, despercebidos, mas importantíssimos rituais. Ele é o fazer da barba, para quem a faz, bem entendido, ele é o lavar de mãos e caras, ele é o acertar dos cabelos onde pensamos ficam melhor, o puxar das calças para cima, primeiro uma perna, depois a outra, meias, sapatos, o enfiar das mangas da camisa, depois os botões, um a um, pulseiras, batons e mais uns quantos produtos que não sei nomear, relógio, mais recentemente as modernidades exigem, também, o verificar de baterias de telemóvel, um toque de perfume, um creme para as mãos, uma última olhadela no espelho apurando a aspecto geral, um pelo que se tira do casaco, um toque de graxa neste sapato e saímos de peito feito para as alegrias e para os aborrecimentos a enfrentar enquanto a nossa terra dá mais uma voltinha do seu perpétuo movimento rotativo. Lá diziam os antigos que a vida é uma roda, e vê tu como acertavam, mesmo sem grandes ciências nem telescópios gigantescos a atestar uma verdade sentida que não racionalizada. Estes rituais variam de acordo com cada ser que cada ser é um universo. Contudo, gosto de pensar nestes pequenos gestos com a admiração de quem presencia um milagre. O milagre da renovação. São gestos que se unem em torno de si mesmos e gritam pelas janelas e pelas portas das casas:

- Este está pronto!
- Este está lavado e arranjado!
- Esta está penteada e maquilhada!
- Este vai sair agora para o trabalho!
- Esta vai para uma reunião importante!
- Este vai fazer uma corrida de manutenção!
- Este vai levar as crianças ao jardim-de-infância!
- Esta está pronta para ganhar!
- Este preparou-se para perder!
- Este vai odiar!
- Este Vai amar!

E o curso dos dias confirma ou desmente a intenção do primeiro passo que damos ao sair da porta mas há algo de comum a toda a Humanidade, todos os dias: acordar para a vida, renascer para o mundo, prepararmo-nos para mais uma voltinha no carrossel da terra!

Tanto quanto me lembro, a nossa casa, chamando casa à casa e às coisas e às pessoas e aos actos e aos gestos e aos sentimentos que a habitavam, não era muito diferente das outras. Despertadores, olhos ensonados, a mãe a despertar toda a gente, o pai e o seu ritual de barba feita, sempre, “são só dois minutos”, leite a ferver púcaro a fora que ainda não tinham acordado os micro-ondas, pão, qualquer coisa nele, mas, acima de tudo, a marcar-me a memória a fogo-amor, a vontade de dar, a capacidade de receber, a pintar-me o passado em tons de harmonia e felicidade, fica-me uma imagem: o pai de pé, com um braço esticado, a face de lado olhando por cima do braço e a mãe junto a ele fazendo-lhe a dobra da manga da camisa. Estava ela como se o estivesse marcando para o diferenciar do resto dos mortais, estava como se estivesse escrevendo um poema que dizia este é o meu marido, é diferente de todos os outros, vê-se bem, tem uma dobra na manga da camisa, fui eu que lha fiz, fui que a amei, leva-o, mundo, e devolve-mo à noitinha. Ela dava como só uma mulher profunda e enternecidamente apaixonada, mesmo aos 30 anos de casamento, pode dar. E ele recebia como quem recebe um conselho, uma mais-valia, um prémio, e vivia aquele dia, como todos os outros, com o orgulho de ter sido o homem que se tinha preparado para enfrentar a vida com uma dobra nas mangas da camisa. Uma dobra de dedicação. Uma dobra de nobreza no dar e no receber. Uma dobra de amor amado nos gestos simples dos dias simples das pessoas que se tinham como as mais importantes, as mais amadas. Tantas vezes vimos aquele quadro, tantas vezes se repetiu e nunca se banalizou. Havia ali um momento em que a azáfama parava, em que o universo esperava uma insignificância de tempo para que a vida pudesse continuar. Era o momento em que os nossos pais acordavam para mais um dia fazendo amor em mangas de camisa!

Beijo grande

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