Não há não tenho tempo

[Luís Marques Mendes é eleito presidente do PSD no XXVII Congresso Nacional do partido. O Vaticano nega os rumores sobre a morte do Papa João Paulo II. Autoridades espanholas prendem 13 suspeitos de participação dos atentados de 11/03/2004. Morte do Papa João Paulo II (Karol Wojtyla). O tenista suíço Roger Federer vence o espanhol Rafael Nadal e conquista o Masters Series de Miami.
[Data da primeira publicação: 1 de Abril de 2005]

Não há não tenho tempo
Querida mana,

Muitas vezes te tenho escrito e muitas vezes as palavras me fogem ao controlo de autor e acabam expressando o que pensam sobre o Tempo. Autoritário, apago os parágrafos, silencio as palavras e as ideias delas em impulsos de autoridade autoral e lhes digo que não é aquele o caminho, que não são minhas aquelas ideias mas sim delas, palavras libertinas e insubmissas. Retomo a escrita e o carreiro das ideias nasce na minha poltrona de autor para depressa se rebelar, tomar vida própria e seguir um caudal que há-de levar qualquer coisa de mim mas que não sou eu em exclusivo. É por isso que muitas vezes te quero escrever sobre o pai, sobre a mãe, sobre coisas inúmeras da nossa infância e acabo, perdido, de volta do Tempo. Não sei já, mana, quantas foram as vezes que comecei escrevendo sobre o dia em que nasceste, sei só que foram as mesmas que terminei por não fazê-lo. São incómodas e incomodativas, as palavras, quando se rebelam e insurgem contra a vontade tão pouco soberana de quem julga comandá-las. Hoje fiz este exercício de raciocínio: conversei com as minhas palavras que começaram por dizer-me que não eram minhas. Não chegámos a acordo. Somente a breves cedências mútuas. E perguntei-lhes de que queriam falar-te. Que coisas queriam dizer-te. Que mas dissessem já e evitaríamos tempos perdidos em batalhas inúteis que as ditas sempre levam de vencida.

E sussurraram-me coisas do Tempo. O tempo de fazer. O tempo de ir. O tempo de voltar. O tempo de recordar. Ter tempo. Não ter tempo. Arranjar tempo para. Inventar tempo. Precisar de tempo num tempo único e breve que se não tem e se não gasta porque se não tem. Um tempo frágil para quem quer fazer o mundo e tê-lo na mão. E disseram-me, estas palavras insubmissas, que não há tempo senão o de estar. Que se não rouba nem cria nem desperdiça nem dá nem tira o que não está na nossa mão senão para estar.

Fiquei-me a dar razão às palavras e a pensar quantas vezes, vezes demais, já disse de mim para comigo “não tenho tempo”. Um dia destes visitaste-me e estivemos por aqui entretidos vendo cassetes de quando o meu filho mal se tinha nos pés, de quando estendia os braços ainda para amparar-se, de quando os meus compromissos se resumiam a pouco mais do que olhar por ele, de quando lhe nunca dizia “não tenho tempo”. A simplicidade dos dias de então emergiu grandiosa nas pequenas coisas que me contentavam e reparei que me contentava com olhá-lo como se estivesse sorvendo e cristalizando o Tempo, me contentava com atirar-lhe a bola ao ar para ficarmos os dois, lado a lado, vendo-a cair. E pensei: “houve um dia em que tive tempo para ver cair uma bola dos céus com a mesma ânsia e expectativa que o meu pequeno companheiro de entretém."

Não há “não tenho tempo”, mana. Há só estarmos. Há só o que fazemos com Ele. E criei uma brecha nos compromissos. Criei uma falha nos assuntos inadiáveis. Criei um buraco negro na ausência e fiz tempo e fiz vida e fiz partilha e tive na mão o que pensava me havia escapado: o Tempo. Um destes dias, mana, cortei os cordões com o inadiável e adiei-o. Um destes dias, dei importância ao importante e corri por um pinhal adentro com uma bola na mão que chutei para os céus com quanta força tinha. Depois, sentei-me junto do meu filho e fiquei vendo-a cair…

Beijo,
Mano

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