As páginas do fim…

["As páginas do fim" foi o último texto da série "Mails para a minha Irmã" publicado no Jornal "O Entroncamento". Aquele jornal viu-lhe cortados os portes pagos, por isso, fechou. Foram publicadas, quinzenalmete, 50 crónicas, com algumas intermitências, entre Novembro de 2002 e Julho de 2005. Todo o trabalho no "O Entroncamento" era voluntário e gratuito. Da equipa recordo o Padre Borga, o casal Barata, eternos amigos meus e de toda a cidade, os colaboradores e, sobretudo, a grande entusiasta e suporte de toda a equipa, a estudante do ensino secundário que fazia a montagem e edição: Ana Geraldes. Tanto quanto sei a Ana formou-se mesmo em Jornalismo e a última vez que a vi foi na televisão, numa reportagem de rua, com o microfone da SIC na mão. Prova de que no "O Entroncamento" se forjou algo mais do que a singeleza dos nossos textos.
Este blogue prente dar continuidade a essa escrita porque a escrita nunca acaba!

[Data da primeira publicação: 1 de Julho de 2005]
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As páginas do fim…

Querida mana,
Há já algum tempo que te venho escrevendo páginas de memórias soltas e anárquicas de quem oficia a escrita como um culto. O culto da memória, o culto da ficção enredada em sentimentos de verdade, o culto de uma verdade minha e tua que não é, forçosamente, a de todos. E fui construindo teias e ideias onde os factos daquelas se revelaram bem menos importantes que as implicações destas. E por aqui andei brincando às escondidas com o passado e o presente, com a realidade e a ficção. Mediou-nos o sentir este jornal de verdade que é “O Entroncamento”. Hoje, contudo, a realidade veio intrometer-se nas minhas reflexões de brincar com as ideias e fê-lo pesada e definitiva. Recebi um telefonema onde me anunciaram ser esta a última edição, serem estas as páginas do fim. Entristeci-me. Há algum tempo para cá vinha dizendo que o “nosso jornal” estava crescendo, ficando mais denso. Era o reflexo de um processo assente na dádiva, na partilha, no aproveitar das potencialidades que cada um oferecia como quem mata a sede a quem lhe pede água. Aqui se viu a terra, aqui se conheceram as pessoas, aqui estiveram as ideias, por aqui passaram as reflexões e foi crescendo um espaço na cidade, no coração de quem nos lia, foi crescendo o lugar de “O Entroncamento”.

Sem pretensiosismos, sem ambições maiores que não fossem as de partilhar, divulgar e criar um espaço de interesse pelas ruas à volta da ferrovia…

As razões não são o mais importante. São coisas pequenas à imagem da humana pequenez. São coisas de homens enredados pelas suas próprias leis, cansados dos seus próprios gestos… são coisas de dinheiros e portes e prosaísmos que atropelam o que de melhor aqui havia: ideias, rigor, vontade, entrega… perece tudo isto, perece um espaço de reflexão e dedicação às mãos de umas leis, de umas deliberações, de uns entendimentos difíceis de entender… lembro-me das palavras de um escritor português do início do século vinte que rezavam, com pouca margem de erro, mais ou menos assim: Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa(…)

Não decorre das minhas palavras qualquer intenção ofensiva de quem triunfa senão a constatação da nobreza de uma morte como acto último de libertação. É que podem ser estas as páginas do fim, mas serão também páginas que hão-de permanecer na memória de quantos as escreveram, as orientaram e, claro, de quantos as leram com carinho, com entusiasmo ou, tão só, com reconhecimento… pode terminar aqui o nosso caminho mas termina um caminho trilhado com dignidade, com o mais puro jornalismo à face da terra: aquele que é feito da entrega, da dádiva, sem qualquer outro interesse que não o de manter viva a chama de chegar junto de alguém com alguma luz, com uma palavra a despertar interesse, a despertar um olhar curioso, a inquietar uma alma sossegada!

Do pouco que a vida me ensinou, do pouco que aprendi, do pouco que sei do Homem, ainda retiro para mim que estes jornalistas hão-de continuar a reflectir, a inquietar-se e a inquietar, hão-de continuar a semear palavras de ideias em campos de mentes que as queiram fecundar. Do pouco que sei, ainda sei que valeu a pena ter conhecido a maravilhosa equipa deste jornal que me apoiou e entusiasmou e impeliu a trazer à luz do dia, em letras de vida, os “mails para a minha irmã”. A todos eles deixo um sentido e profundo abraço de gratidão.

Quanto a nós, mana, encontramo-nos na primeira esquina da vida, no primeiro mail que acontecer… a musa continua desse lado e deste continua a mente ávida de dedos ávidos de teclado ávido de monitor ávido de um cursor que ali pisca, inquieto, à espera do próximo mail para minha irmã…

Beijo
Mano

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