A crise…

[Este foi um mês negro para Portugal, de facto, em junho de 2005 morreram o poeta Eugénio de Andrade, o político e histórico dirigente do PCP, Álvaro Cunhal e ainda o neurologista Mário Corino da Costa de Andrade. É assinado o Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica entre Portugal e Polónia. O casal britânico Percy e Florence Arrowsmith comemora 80 anos de casamento. Explosão de bomba em frente ao Ministério do Trabalho em Atenas. Os alpinistas Waldemar Niclevicz e Irivan Gustavo Burda chegam ao topo do Everest. Israel liberta 398 detidos palestinos. Neste mês Bagdad é varrida por uma série de atentados bombistas. Emerge na sociedade portuguesa e internacional o espectro da crise económica.
[Data da primeira publicação: 17 de Junho de 2005]

A crise…

Querida mana,


Lembro-me com clareza de certas tardes em família de tremoços pelas mesas, frescuras de cerveja, petiscos diversos, olhos a sorrir numa varanda salpicada de cravos que a avó Ana punha e cuidava com o sucesso de uma receita de carinho e atenção. Lembro-me do pai em calções cinzentos, as pernas alvas de pouco sol e o avô em figura semelhante trocando ambos palavras semelhantes de pensamentos semelhantes… o quadro é luminoso e projecta-me para momentos ímpares de uma infância bafejada pela família. E lembro-me de como um e outro, não fosse o mulherio ou a criançada julgar que aquele estado de coisas, aquele hedonismo de brisas a cortar o calor de um fim-de-semana diferente, tinha vindo para ficar além dos dois dias que intervalavam a sexta e a segunda-feira, afirmarem, de repente, em tom grave como quem avisa:
- Mas isto está mau senhor João!
- Pois está senhor Videira, mas o pior não vai ser para nós que estamos velhos, o pior há-de ser para os nossos filhos, e para os nossos netos.

Era o momento do fim-de-semana em que descia sobre as nossas cabeças a sentença pesada de um futuro negro assim ao jeito de um Nostradamus a anunciar, segundo os entendidos, o fim do mundo para 1987. O mesmo fim do mundo de Orwell em 1984 e que algumas correntes do pessimismo humano garantiram seria em 2000… pois os anos já passaram, já cá não estão e o mundo cá continua na sua serenidade milenar a ver desmoronarem-se os apocalipses que construímos.

Vim a este assunto porque, segundo os jornais e a rádio e a televisão portugueses, também este nosso jardim de beira-mar está à perto do seu fim de mundo privado… as previsões mostram-nos já debaixo de pontes pedindo esmola uns aos outros, famélicos e desempregados, sem reformas, falidos, sem capacidade de reacção perante o monstro que definha a figura de Adamastor: a Crise!
Grande é ela e feia. E ameaçadora. De proporções terríveis. E virá ou já cá está para devorar os pequenitos, indefesos e incapazes nautas deste quotidiano banhado pelo mar e pelo sol…

Ora, sem preciosismos nem pretensões olhemos a bestial investida do monstro assim de relance que nos não atrevemos a deitar-lhe um olhar frontal não vá ele cegar-nos…

Socialmente somos uma miséria. Acolhemos gente de todas as raças, integramo-los a todos, recebemo-los de braços abertos e tolerantes e inserimo-los no nosso quotidiano partilhando o trabalho, a amizade, a habitação e os dispositivos e equipamentos sociais. Somos uma lástima de povo que espalha pelos cantos todos da terra que, neste caso, são bem mais que quatro, uma língua a ser reconhecida, um povo a ser respeitado… outra lástima social que por aqui paira é termos a funcionar sistemas públicos de saúde, educação, justiça, segurança e apoio social… uma lástima este país!!!

Educativa, cultural e desportivamente ainda vamos pior... há pouco tempo um desses organismos mundiais que serve para medir coisas dificilmente mensuráveis colocava-nos em quinto nesta terra pequena e redonda no domínio das capacidades matemáticas. A próxima expedição a Marte será comandada por um português. Português é o melhor treinador de futebol do mundo. Bem como são internacionalmente reconhecidos os nossos méritos literários e nas ciências médicas que falam por estas os recentes prémios e reconhecimentos, por exemplo, da academia Nobel e da academia de Oxford… somos tão maus que fomos os únicos até hoje a conseguir um sistema automático de cobrança de portagens… e a falta de formação deste povo. É um povo tão mal formado, mas tão mal formado, que tem uma das maiores taxas de desempregados licenciados. É assim um desemprego de luxo! Qualificado!

Politicamente somos outra desgraça pegada. Vai-se a ver e é por sermos essa desgraça pegada que o presidente da EU é português como é português um dos mais altos-comissários da ONU.

Religiosamente este país está perdido. Bento XVI levou menos de quinze dias de papado até se expressar em português e albergamos, neste pequeno rectângulo banhado de areias e mar, templos e gentes de todos os credos, bem, quase todos!

Mas é na economia que isto vai mal… mesmo muito mal. Repara, mana, temos um dos melhores e mais actualizados parques automóveis da Europa. Todos os anos esgotamos a quota de importação de veículos. Construímos os maiores centros comerciais da Europa que, entretanto, estão sempre à pinha. As filas nas caixas dos supermercados crescem, não temos população suficiente para preencher toda a habitação que construímos e não podemos colocar mais pontos de pagamento de portagens porque já temos a maior quota europeia de construção de auto-estradas!

Eu sei, mana, eu sei, que isto não está bom. Ou, como dizia o pai, isto está mau, está muito mau, mas, às vezes, apanho-me numa esquina do raciocínio a pensar de mim para comigo se não há para aí alguém a quem interesse que isto pareça muito pior do que realmente está, assim como o pai fazia com o avô à frente duma cervejinha e duns tremocinhos…

Beijo
Mano

NetWorkedBlogs