Os anjinhos todos…

[Portugal desiste de referendo sobre a legalização do aborto. Morte do desenhista português Eduardo Teixeira Coelho. Coreia do Norte testa míssil (atinge o Mar do Japão). Casamento da atriz Renée Zellweger com o cantor Kenny Chesney. Acordo sobre Cooperação Econômica e Comercial entre Angola e Argentina. Tony Blair anuncia formação de seu novo governo.
[Data da primeira publicação: 27 de Maio de 2005]

Os anjinhos todos…

Querida mana,

O dia estava quente.
No céu havia aquele espraiar de nuvens que se vão alongando em tons de encarnado aqui mais ao pé a fugir para uma multidão de laranjas à medida que a distância se alonga.
Para mim, fora um dia normal de escola mais almoço mais escola mais brincadeira mais voltar a casa com os sonhos todos na alma, com os projectos todos na algibeira.

Nada previra que haveria Natal nesse dia. Nada previra neste meu mundo de criança a viver cada dia como se nele estivesse a vida toda que os anjos e os santos e a santíssima trindade e os olhares felizes, e os preocupados, e os suores na testa, e os “vai correr tudo bem”, estivessem todos à minha porta por volta das 19:30 quando regressei das minhas aventuras, das batalhas, das futeboladas e da escola, a outra, a dos cadernos!

Olharam-me todos como se tivessem algo de extraordinário a revelar. E tinham! E nesse momento o quadro deve ter sido o normal. Uns quantos adultos a baixarem-se à minha altura, curvando-se, de mão nos joelhos, com palavras doces e miraculosas a anunciar o milagre. Na minha memória nunca foi um quadro normal. Não sei porquê, vejo sempre os adultos dirigindo-se a mim envoltos numa aura branca e diáfana como se não fossem deste mundo, como se o que estivessem para dizer não fosse deste mundo também. E tento lembrar-me deles sem esta névoa cintilante mas não consigo. Tento rasgar no pensamento uma porta para a normalidade mas o milagre não sai de lá.

Vem até mim o senhor Sá, santo da bonomia e da compreensão. Vem até mim a D. Emília, santa da diversão e do riso. Vem até mim o pai, santo do amparo e da força. Vem até mim o avô, santo da partilha e da conquista. Vem até mim a avó, santa de todos os santos, de todas as coisas boas. E vêm até mim mais uns quantos santos periféricos que se despegam, já, da imagem recordada. E em coro cantam na voz que os santos têm quando anunciam milagres: ó Paulinho, anda cá, vem ver, tens uma maninha nova!

A expressão é discutível. Primeiro porque eu não tinha nenhuma mana velha, de facto não tinha nenhuma mana, depois porque quando se tem uma mana que se não tinha antes ela há-de ser nova forçosamente. Mas as palavras continham em si a intenção anunciadora de um novo estado de coisas. De um novo mundo. De uma nova configuração dos espaços, de uma nova gestão dos tempos, de uma nova presença na minha vida, de um surgir novo e miraculoso de emoções e sentimentos nunca antes experimentados. O que mais me impressionou, ao longo dos anos, no dia em tu nasceste, mana, é que eu nasci também. É que o depois de ti apagou o antes de ti. É que a minha vida recomeçou depois de ti e assim viria a ficar até ao dia em que fui pai…

Lá subi as escadas e, dentro de casa, a aura era agora dourada. Tudo brilhava. Havia sussurros femininos, mulheres que passavam apressadas e pressurosas no ofício de dar vida à vida. E vi-te. Vi-te juntinho à mãe. Gordinha, cor-de-rosa, linda de viver. Eras frágil e não sabias fazer nada senão respirar e mamar e, contudo, já tinhas tido a força de juntar à tua volta meia cidade.
Completou-se-me na alma o quadro dos santos. Maria e o menino Jesus afinal também tinham vindo à festa do Natal… é engraçado, e agora to confesso, como me não interessou para nada, na altura, se eras menino ou menina… eras o teu espaço no meu peito e isso bastava-me. Que chã ficou a filosofia nesse dia. Resumia-se a olhar o céu da janela do meu quarto e ver o mundo como o nunca tinha visto antes: pelos olhos da fraternidade e da partilha! São José foi desalojado do seu quarto e da sua cama não fosse ele magoar a menina durante a noite. E por isso se deitou comigo. Cama pequena para dois peitos inchados de vida e orgulho. E quando adormecemos, eu agarrado a ele e ele com os pés de fora, tínhamos um mundo novo na mão. Um amor novo no coração. E ele disse de mansinho:

- Tens uma mana nova, tens de a tratar com cuidadinho!
- Está bem papá!

E o mundo renasceu. E a vida recomeçou… no dia em que tu nasceste!

Beijo
Mano

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