E quem liga o acordo ortográfico ao "productor"?

Querida mana,
quando uma manhã de sábado acorda brilhante e quente não há como resistir: sair de casa é a única solução. Um destes sábados, a manhã levantou-me da cama a ameaçar que se aí ficasse perdria um excelente dia.
Entre a pasta dos dentes, o pequeno-almoço e o entrar para o carro a coisa foi breve e lá partimos os três à descoberta dos recantos deste país que ainda são portugueses. Algures numa curva à esquerda, em plano inclinado, dou de caras com um letreiro todo janota, com uns cachos de uva pintados e cuja inscrição assim rezava: VINHO DO PRODUCTOR.
-
Aquele intrometido C atrás do T fez-me parar o carro e tirar uma foto, primeiro, depois começou a estorvar-me a tranquilidade da alma.
-
Não sei se te lembras, mas acredito que sim, aos sábados, a nossa mãe, antes de sair de casa para o trabalho, deixava sempre uma imensa lista de tarefas para cumprirmos quando acordássemos. Sempre achei, de resto, que era um contra-senso deixar-nos a dormir porque, se o fizéssemos, não tínhamos tempo para as tarefas todas e era o cabo dos trabalhos, ou não, consoante o humor. Nesses bilhetes, relembro com carinho alguns pormenores de escrita sendo que um sempre me ficou mais vivo na memória e me levou mesmo a interrogar alguns professores: "Ó setôr, como é que se escreve coêlho? É com acento não é?" E andei procurando pela juventude fora um professor que me dissesse que a mãe tinha razão, que ela é que escrevia bem. A razão desta procura é simples. A mãe era tão perfeita em tudo que eu não queria que ela falhasse na palavra coelho!? Nunca consegui essa tranquilidade até ao dia em que encontrei o PRODUCTOR.
-
Eu percebo o que se pretende com o acordo ortográfico. Unir povos. Unificar culturas. homogeneizar a grande diáspora portuguesa. Tudo isso está muito certo mas penso, por vezes, se não será inglório tentar homogeneizar o que não é homogeneizável. Eu vejo a Língua como um organismo vivo e percebo, por isso, que tem de evoluir mas não acredito que essa evolução deva ou possa ser artificial. Uma tal evolução deve seguir e respeitar o uso que os falantes fazem da Língua. E a verdade é que se os nossos irmãos brasileiros dizem fato em vez de facto ou diretor em vez de director e assim o escrevem, então devem ter liberdade para o fazer. Tal liberdade contudo não deve fazer tábua rasa de uma maior proximidade que nós, falantes do português de Portugal, temos em relação à origem desta nossa maravilhosa Língua: a cultura greco-romana.
-
Uma proximidade assim aduz um argumento que parecendo frágil pode revelar-se determinante: os nossos falantes quando dizem facto ou director sentem o C. É verdade mana, há sons que se sentem e outros que só se pressentem mas estão lá. Talvez não seja por isso que a mãe escrevia coêlho mas é de certo por isso que o produtor escreveu PRODUCTOR!
-
Sem querer aborrecer-te, ainda avanço um esclarecimento: produtor emana do verbo latino produco que tem o supino productum onde está o tal C. Quem escreveu o letreiro não conhecia estas minudências da etimologia mas sentiu o C! E isso é que é importante!
-
Eu penso, mana, que este acordo vai descaracterizar a Língua Portuguesa continental, penso que vai desbaratar uma importante herança cultural e penso, também, que causará o caos entre os aprendentes mais jovens. E é por isso que não concordo com ele.
-
Depois e não menos importante, se a mãe até há pouco tempo ainda escrevia coêlho e o senhor das vinhas ainda escreve PRODUCTOR, porque é que eu tenho de tirar o C ao facto?
-
A Língua há-de evoluir, como sempre aconteceu, mas essa evolução tem de ser determinada pelos falantes, os falantes é que são os soberanos da Língua! O que está a contecer é, a meu ver, a introdução espúria de alterações à regra que não respeitam a norma, é um processo artificial e o que é artificial, a humana mente costuma rejeitar. Já para não falar de outras motivações e complicações como, por exemplo, perceber critérios comerciais a antecipar os culturais.
-
E pergunto, se o acordo ortográfico é para ligar, unir, unificar, como é que se liga o productor ao acordo ortográfico?
-
Lembrei-me, a propósito disto, de um arrozinho de coêlho que a mãe costumava fazer...

Beijo,
mano.

NetWorkedBlogs