Saramago não está senil. Não o desculpem dessa forma.

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Querida mana,
como ficar indiferente às palavras de José Saramago sobre a Bíblia? Como ficar indiferente às múltiplas reacções? Como passar ao lado desta discussão? Não há como. Só fingindo que não aconteceu mas o facto é que, lamentavelmente, aconteceu.

Ainda hoje lembro momentos da nossa infância que chocam com a função corrosiva das palavras daquele escritor. A forma como fizeste a tua primeira comunhão, a entrega da Mimi nesse processo, a fé da velinha acesa todas as noites, o facto de o avô nunca entrar numa igreja, senão para casamentos e funerais, mas acompanhar a avó aos Domingos de Páscoa, a nossa avó, todas noites, com a Fé toda do universo, de joelhos, rezando junto à sua cama, invocando os nomes do netos, nada disto eram maus costumes, nem crueldade nem nada do que Saramago julga saber... Era só uma força boa, uma Fé genuína, actos de devoção impelidos pelo que de melhor há na Natureza Humana ao contrário do que defende José, o ignorante Saramago.

As suas palavras foram as seguintes: “a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”.

Importa reflectirmos em que contexto foram pronunciadas: no contexto do lançamento de um livro chamado "Caim". Ora, vai sendo do senso comum que a qualidade da escrita de Saramago tem decaído na últimas publicações. Há mesmo quem defenda que o último bom livro de Saramago foi há três ou quatro atrás e que o escritor está ficando senil.

Por favor, mana, não o desculpem com a senilidade. Na minha opinião, modesta mas firme, o escritor ensaiou um golpe de marketing e vendas. Provavelmente nem nunca leu a Bíblia, mas afirmações deste teor atraiem atenções e compradores e, gostemos ou não, Saramago vive de vender livros! Este pensamento veio-me à mente porque no dia em que as afirmações foram proferidas cruzei-me com um colega de trabalho que tinha acabado de ouvir as declarações e... de comprar o livro. Até acrescentou "Onde eu o comprei, estava-se a vender bem!"

Saramago não sabe nada da Bíblia. Ou sabe muito pouco. Nem se interessa por ela. Mas sabe e interessa-se pelo seu livro e, claro, quer vendê-lo!

O pobre não desrespeitou só a avó Ana e a Mimi, desrespeitou, porque não percebe, o maior movimento universal de Fé e, naturalmente, o Livro que o suporta. O que Saramago não conseguirá vencer, nunca, é o facto de o livro mais divulgado do mundo, o mais lido, o mais traduzido ser aquele que agora despoletou a sua verborreia infeliz.

Não é fácil perceber a Fé, por inerência, torna-se difícil aceitá-la, logo, o mais fácil é rejeitá-la...

Há aqui um perigo. Por ter alcançado uma projecção literária universalmente reconhecida, Saramago é ouvido e pode haver quem, por isso, tenda a levá-lo a sério ou mesmo a acreditar nele. Temos a tarefa de o desconstruir.

Vejamos: se a Bíblia fosse um manual de maus costumes e um catálogo do pior da natureza humana, como poderia estar na base das práticas mais nobres, das causas mais justas, da entrega, da dádiva, da redenção humanas? Este paradoxo, o escritor não resolveu. Das duas uma, ou não percebeu, ainda, a Bíblia, ou isso não lhe interessa para nada desde que vá vendendo uns "Cains"...

Alguém dizia que o escritor devia renunciar a ser português. Outros disseram que são palavras para esquecer. Eu não concordo com uma coisa nem com outra. Entendo que devemos sempre lembrar que um dia um português ofendeu o Livro dos livros. E devemos usar essa memória para educar as gerações futuras. Ensiná-las o que não é um português e como se não deve ser português. Ensiná-las como, a coberto da liberdade de expressão, um português pode desrespeitar séculos de devoção, desrespeitar a Fé de milhões, por uns trocos!

Como sabes, o teu mano nem sequer é um crente dos mais devotos mas impressiona-me a leviandade com que, nos dias de hoje, nos referimos aos assuntos mais sérios, a facilidade com que desrespeitamos, a irresponsabilidade com que passamos mensagens, só porque pensamos que podemos, só porque sim.

Saramago diz que a Bíblia nos enganou. Eu, se comprasse o livro dele sentir-me-ia enganado. Gosto do que escreve. Li toda a sua prosa. Comprei-a toda. Mas este vou dispensar. A Bíblia talvez me conseguisse enganar, Saramago não!

Beijo em jeito de desabafo,
mano.

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