O trilema do mano da outra Teresa

Querida mana,

afinal, parece que há mais irmandade na terra para além da nossa!

Um dia destes, alguém comentou um dos textos que aqui publiquei tendo semi-assinado, semi-quebrado o anonimato. Anunciava-se o comentador como o "mano da outra Teresa". Pressuponho quem seja a outra Teeresa e, por consequência, calculo que o signatário seja seu irmão.

Pedia-me, na altura, ajuda para explicar à sua mana o que é ser homem, marido e pai: o seu trilema. Está tudo aqui: http://mailsparaaminhairma.blogspot.com/2009/07/o-convite.html

Ora, para lhe facultar tal explicação necessitava de um referente. Não me considerando tal resolvi pensar no nosso pai e explicar-te a ti, porque contigo entendo-me bem, a explicação que talvez sirva para o nosso leitor e, eventualmente, para a sua irmã.

Ser homem, marido e pai é, efectivamente muito difícil e quase todos nós, homens, maridos e pais, acabamos por falhar nalguma delas. Ou, pelo menos, a pagar o preço de não falhar que é elevadíssimo na medida em que significa aniquilarmos uma destas figuras dentro de nós sendo, tendencialmente, a de homem a mais "apagável", depois a de marido e só por fim a de pai que é a mais "segura".

O homem em nós é livre e libertino por natureza. Tem ritmos próprios, rotinas traçadas, hábitos, rituais e está pouco disposto a abdicar deles. É dominador e pensa com frequência que é sua obrigação cuidar do mundo, ser responsável por ele, traçar-lhe os destinos. Procura uma fêmea de cada vez e acasala tantas quantas pode na medida em que tem a ancestral e imperceptível marca de que é necessário garantir a continuidade da espécie. Isto, ou é assim, ou é um imenso e universal pretexto para andarmos sempre à procura de fêmeas!

O marido escolheu outro caminho. Percebeu que isso da continuidade da espécie é uma treta, e livremente aprisionou-se numa relação monógama de dedicação exclusiva à sua mulher: a eleita. Normalmente o marido não repara, mas a verdade é que a eleita é que o elegeu a ele! Há um senhor que explica isto muito bem no National Geographic para os leões e eu acho que assenta perfeitamente nos maridos. O marido vive feliz, dedica-se, esforça-se por manter a relação até ao dia tramado em que a sua natureza de homem chama por ele. Aí tem duas saídas. Ou arma-se em parvo e vai por África adentro à procura duma leoa mais jovem e promissora (estas leoas normalmente têm um ar mais desplicente, as nádegas firmes e usam fio dental) e embarca numa relação duradoura de três semanas. Ou reflecte, pensa nos seus compromissos, na qualidade da sua relação, e vai ao cinema, organiza um jantar a dois com velas pelo meio, arranja uma ocupação, por exemplo, colecciona uma coisa qualquer e mantém-se firme. Qualquer que seja a opção, a decisão não é fácil e, caso tenha tido o bom senso de continuar marido, irá sentir que o homem fez cedências. O marido considera as cedências naturais, o homem não.
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O pai, curiosamente, sendo, por norma, o último a surgir dos três, está acima dos outros dois. Permanece firme no inabalável propósito de ser um bom pai que é a sua formulação para cuidar bem das crias porque são a imagem de si, mais ainda, são a sua continuidade, a sua imortalidade! Com facilidade um homem abdica de ser homem para ser marido. Ou, com menos facilidade, mas, ainda assim, com assinalável frequência, abdica de ser marido para ser homem. Já é raro que abdique de ser pai por qualquer um dos outros. Atenção que eu nunca escrevi "ser bom pai". Não há bons nem maus pais porque antes e acima de isso tudo está ser-se pai, só. Como se sabe. Como se pode. Como se pensa que está bem. Não são os pais, nem mesmo os outros adultos que nos observam a ser pais, que podem dizer o que é ser bom ou mau pai. Para essa avaliação só os filhos têm competência ou, pelo menos, só a eles lha reconhecemos. E muito bem.

Ora, o nosso pai, fazia o impossível. É que, como reparaste, tudo isto está eivado de fracturas, de fronteiras e barreiras, e é de difícil articulação. Perdem-se as coerências e com facilidade se cai em contradição. Quer nas palavras, quer na acção. O impossível que ele fazia era ser tudo isto ao mesmo tempo em harmonia, com naturalidade. Com uma orientação que diria empírica e imediatista mas a resultar melhor que as estratégias todas e todas as pedagogias. Nunca foi um homem, um marido, um pai de fundo. Foi sempre um homem, um marido, um pai do momento, daquele problema específico, daquele sorriso, daquela mão na hora certa, do olhar severo e do terno na hora da severidade e da ternura. Só quando morreu, nós conseguimos ver o quadro por completo. Só nessa altura vimos que o nosso pai tinha sido, efectivamente, um homem, um marido e um pai de fundo. Fê-lo, paradoxalmente, negando essa condição em prol do contínuo imprevisível da vida.

Ao longo da sua vida, não só depois da morte, as pessoas que gravitaram à volta do nosso pai-estrela-de-luz, reconheceram-no como um bom homem, um bom marido e um bom pai. Uma trave. Uma segurança. A dedicação em pessoa. E contudo estou convicto de que nunca planeou sê-lo, nunca traçou uma estratégia. Limitou-se a ir sendo, a ir esgrimindo com a vida o jogo dos equilíbrios, a ir gerindo expectativas e tensões, dando exemplos, defendendo princípios.

Às vezes, quando olho para o meu percurso de homem, marido e pai, e me reconheço os erros, as falhas e os desacertos e sinto que estou tão longe dos padrões que o nosso pai estabeleceu, penso que foi tudo porque planeei, projectei, programei Ser em vez de ir sendo.

Acho que o mano da outra Teresa ainda ficou mais confuso. Acho que a Teresa não teve grande ajuda para entender o trilema do seu mano mas tenho a certeza de que ser homem, marido e pai vive da busca contínua e constante do equilíbrio. Vive da dádiva, de pensar nos outros antes de nós, vive da gestão sábia, da procura de consensos, do amor, do carinho, da protecção. Vive de Estar, mais do que de Ser. Mas isto eu não sei fazer e já me dou por muito feliz por ter visto fazer.

Às vezes perguntam-me qual foi o meu melhor professor e quase sempre estão à espera de um nome de um senhor professor doutor dos muitos por que passei na faculdade, mas a minha resposta, em nome da justiça tem de ser: "O meu melhor professor tinha a 4ª classe, foi o meu pai!

Beijo,
mano.

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