Estórias ao Acaso: Noite Fria (I)

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Noite fria. Ombros encolhidos e o bafo a desenhar figuras brancas à frente das mãos juntas. Ele sai do trabalho no fim de um dia que promete pouco. O piscar irritante das luzes do carro anuncia portas destrancadas. Casaco atirado com desprezo para o banco de trás. Chave na ignição e o telefone toca...

Em momentos destes, hesitava sempre se atenderia ou não. Se é certo que o dia prometia pouco e o que quer que fosse que respirasse vida do outro lado pudesse ainda fazer brilhar uma qualquer centelha de calor humano, não é menos certo que a vida, nestas alturas em que as noites têm pouco para dar e já perderam a aura idílica e romântica da juventude arfada entre seios generosos e beijos ávidos e desencontrados, tinha uma certa estabilidade. E saber com o que se conta, mesmo que seja nada, é uma conquista dos anos que aprendemos a apreciar.

Há, contudo, essa humana curiosidade que dita, não raro, as nossas atitudes e a inscrição "número desconhecido" no painel do telemóvel espicaçava tanto como incomodava. Há homens e mulheres que resistem a isto. Ignoram. Desligam. E seguem a sua vidinha como se nada tivesse acontecido. São poucos. E há outros que não se perdoariam, nunca, não ter sabido o que estava ao dobrar da esquina. Que grande cometimento ou que coisa nenhuma se escondia por detrás do enigma anunciado. Ele era desses.

Deixou tocar mais umas vezes. O tempo suficiente para meter a primeira, acelerar, segunda, pisca à esquerda e com o telémovel entalado entre a orelha e o ombro articulou em tom expectante de quem, sem estar perguntado, perguntava: "Estou?"

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