Estórias ao Acaso: Noite Fria (II)

- Olá! eu sou a...

Ela não precisava dizer mais nada.
Não foi só o tom doce da voz que ele reconheceu. Foi a confirmação de um momento que antecipara em sonhos, em pensamentos altos e nos escondidos. Fora um desejo que sufocara. Fora algo que escondera dentro de si até esquecer-se de que o tinha guardado no peito. E aquelas palavras, ainda que poucas, foram suficientes para acordar em si tudo o que adormecera. E assim que ela acabou de pronunciar o seu nome ele estava já falando como se a última vez que tinham trocado palavras não tivesse sido há quinze anos mas somente há quinze minutos. O que houvera fora breve mas intenso, tão intenso, que o tempo não apagara. E tudo se reatou com um "Olá!".

- Sim, eu sei quem és. Claro que me lembro de ti. Estás com a voz mais segura...
- Obrigada! Passei uns tempos difíceis mas superei. Agora estou bem. Trabalho estável, cabeça limpa. Não tinha o teu número. Calculei que ainda trabalhasses aí. Liguei-te para o trabalho e deram-me o número.

A voz era, como sempre fora, doce, fluida. Tinha um timbre de seda e carinho e no fim de cada palavra, de cada frase, emergia da aparente fragilidade uma força e uma firmeza que sempre constrastaram com o corpo fino e esguio a anunciar vulnerabilidade. Esta mulher não era frágil. Esta mulher já o vencera uma vez.
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O dia que prometia pouco e terminava em noite fria estava aquecendo almas e prometendo o mundo. A juvenilidade destes adultos revelou-se nos minutos que se seguiram. Trocaram-se telefones, mails, reavivaram-se momentos passados e cada um foi tenteando o outro, procurando perceber-lhe as intenções, avaliando os estragos do tempo nas promessas de amor. A noite foi longa, ao computador. Frases longas, fotos a avivar a imagem esfumada na mente. O motivo que justificava o contacto bailou na conversa mas quando foi trazido às palavras já interessava pouco. Nenhum acreditou nele e seguiram fazendo o que melhor sabiam: amaram-se com as palavras que nestas coisas do amor, o corpo é mais o pretexto do que o texto. É mais o motivo do que a razão. É dispensável e, contudo, sempre presente. As palavras, essas, ardiam na pele e queimavam por ser ditas. Acariciavam, envolviam de ternura e entendimento o que os corpos nunca suprimiram: a solidão.
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Encontrar-se-iam, claro. Como amigos. Amigos sempre foram...
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Ela está agora a deitar-se. Encolhe-se, como sempre faz. E o som dos carros lá fora, e as sirenes das ambulâncias intermitentes, e algumas vozes altercadas ao longe, tudo isso é hoje música nocturna a embalar a alma numa noite fria.
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Ele está agora a deitar-se. Cumpre os rituais de sempre mas há nesta noite fria algo diferente: hoje o coração não lhe cabe no peito. A verdade não o convence. Belisca-se. Sim, está nas nuvens da terra! Puxa um pouco mais para si os cobertores e pronuncia "Boa noite!". E uma voz ensonada e distante responde-lhe do outro lado da vida: "Boa noite, meu amor!"

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