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Resolveu enviar-lhe uma sms: "só já faltam duas horas e trinta e três minutos!"
A resposta foi breve: "Está quase a acabar o sofrimento."
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Ela não soube, nunca, o impacto e o efeito daquelas palavras nele. Havia alguém nesta Terra imensa de desencontros que se encontrara consigo e para quem o tempo da ausência era sofrimento. A falta que tinha desta dedicação. Desta coisa simples que era alguém dizer-lhe "Estás aí, sei que estás aí e para mim isso tem um significado. Estás aí e eu quero estar aí contigo!". De repente, com a precipitação mental que o caracterizava e a paixão que agora o dominava e submetia, pensou deixar a outra vida e viver só nesta.
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Nada havia, contudo, de errado na outra vida. Era uma boa vida. Só não era esta. E, num momento de euforia, atravessou-se-lhe na mente a nuvem negra das limitações com que nascem os humanos. Esta condição estranha que é termos uma coisa maravilhosa, a vida, mas só podermos tê-la uma vez. Irrepetível. Amarrados, inexoravelmente, a cada opção, a cada gesto, sem espaço de erro ou manobra e, paradoxalmente, entregues à mais absoluta ilusão de liberdade. Sacudiu os pensamentos, voltou ao tom de voz dela, ainda ecoando desde o telefonema iniciático. Hoje era dia desta vida. Amanhã, esta vida seria a outra.
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Chegou ao local combinado mais cedo. Queria evitar um desencontro. E esteve ali tremendo, escolhendo uma posição de que ela pudesse gostar. Ficou na pior possível. De pé, pernas afastadas, braços cruzados, parecia um segurança de discoteca. Haviam de rir-se disso, quando fosse o tempo de rir.
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O dia estava caindo. O sol espalhava-se pela cidade amarelecido da tarde e o calor era pouco mas a luz era irrepetível. Ela anunciou-se ao longe, passo firme como quem sabe exactamente para onde vai querendo ir. O recorte da silhueta contra a luz foi-lhe mostrando um corpo igual ao que conhecera, o mesmo cabelo, o mesmo trejeito de cabeça inclinada para um lado a entornar o sorriso. Notou, com interesse, que ela foi reduzindo o vigor da passada à medida que espaço encurtava entre si. Quando estava já junto a ele, a menos de um metro e as respirações eram audíveis, parou.
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E um estranho fenómeno aconteceu. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras, ficaram sem elas! Um olhar no olhar. Um sorriso mútuo, uma contemplação. Um estou aqui, aqui me tens, sou tua. Um estou aqui, aqui me tens, sempre fui teu. Foram as ideias que se comunicaram mas para tanto não houve precisão de palavras. E, estando os corpos presentes, também não foram necessários para mais do que sorrir e olhar. A conversa era agora outra. E as palavras que fossem pronunciadas nada mais seriam que ruído.
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Ele estende-lhe as mãos abertas com as palmas para baixo. Ela estende-lhe as mãos com as palmas abertas para cima. Encaixam. Ela percebeu-lhe a força. Ele leu-lhe a gentileza. E abraçaram-se. Ficaram imóveis, de corpos colados, sentindo a verdade daquela presença, cheirando, comunicando com o corpo todo as coisas que estavam suspensas das palavras há tantos anos. Alguns transeuntes estranharam aquelas duas pessoas, ali, de pé, que se não largavam, abraçadas, como se não quisessem falar-se, olhar-se mais... só sentir-se.
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Ainda sem palavras, afastaram os corpos, voltaram a olhar-se nos olhos e a sorrir-se nas almas. Deram as mãos e começaram a descer a rua, lado a lado, com o sol a aquecer-lhes as costas e a projectar as suas sombras na calçada.