Estórias ao Acaso: Noite Fria (V)

José António Cruz da Silva é o homem mais feliz do mundo e sabe-o.
Dentro de seis meses estará desempregado e esse será o menor dos seus males.
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Como sempre acontece nesta estória, mesmo no seu título, a noite está fria. Cai uma chuva miudinha mas espessa que, atravessada pela luz do candeeiro de iluminação pública plantado à porta da empresa, faz aquele interessante efeito visual que é parecerem estar a precipitar-se do céu gotículas de prata numa imensa correria de ver qual chega primeiro ao chão. José António trabalha nos escritórios. Ofícios, notas de encomenda, pagamentos a fornecedores, faxes, enfim, mantém em funcionamento as veias comunicativas da casa. Contudo, a crise chega a todos e na empresa houve um resizing e entrou-se em lay-off. É curioso como encontramos sempre uma palavra inglesa para as coisas mais desagradáveis. É como se quiséssemos manter a desgraça à distância mesmo quando nos limitamos a referi-la que é coisa de somenos comparada com vivê-la. José António teve sorte. Manteve o posto de trabalho e o horário a tempo inteiro. É no que dá trabalhar com dinheiro. Não se pense, no entanto, que não sofreu consequências. Por via das alterações já aqui referenciadas no melhor inglês que se encontrou, a chuva que se precipita lá fora, iluminada pela luz pública, cai-lhe nas costas. José António teve de preparar e acompanhar o carregamento. Dois camiões enormes entraram na área de cargas e descargas e engoliram as paletes empilhadas sob o imenso telheiro. Desta vez não houve enganos nem nenhuma palete se desprendeu do empilhador e se estatelou na gravidade do chão, nem nemhum operário, com o cansaço, embateu com o empilhador numa resma de paletes e, por isso, o telefonema que José António fizera a Maria de Fátima, sua mulher, ficaria sem efeito. "Sim querida, sou eu. Hoje vêm cá uns espanhóis carregar e tenho empreitada até lá p'rás onze. Não esperes por mim para jantar. Dá um beijo aos meninos. Outro para ti. Até logo... amo-te!"
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São nove e meia e vêmo-lo junto do imenso portão de correr, já corrido, ombros encolhidos dentro do casaco de sebo, como que a tentar ficar com menos área exposta à água que Deus dá. Chaves na mão trancando o que fica do lado de dentro, tal confiança mereceu-a com anos de trabalho irrepreensível. Chaves no bolso. Chapéu-de-chuva aberto. Pés ao caminho para percorrer os dez minutos diários de retorno ao lar que é o seu mundo. Como sempre, vai fazendo o balanço ao dia, acertando as contas com as tarefas que o esperam, antecipando os cumprimentos e os abraços que tem para distribuir aos filhos e à mulher, actores quase exclusivos do palco da sua vida.
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Hoje, enquanto caminha, apetece-lhe recordar o favor que a Fortuna fez à sua vida. Filho de vidas complicadas, famílias destroçadas pelo álcool e pela separação, José António só veio a ter família quando construiu uma. Estudou, arranjou emprego e fez sempre tudo o que pôde para o conservar. Hoje, enquanto sobe a calçada, agradece esta realidade abençoada de ser pai querido e marido amado. Não avisou, por isso, que chegaria mais cedo. Seria surpresa. Jantariam todos juntos, como de costume, na mesa da cozinha e da felicidade. Marco, de oito anos, à sua esquerda. Alice, que devia ficar à direita, estaria sentada no seu joelho comendo ambos do seu prato. Em frente Maria de Fátima, não para a enfrentar, somente para não perder de vista, por um segundo, a mulher que lhe dera tudo isto. Um pouco de televisão e por fim os rituais de fechar o dia e preparar a jornada seguinte.
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Quando entrou em casa não estranhou o silêncio. Os miúdos estariam ainda com a avó. Sentiu a presença de alguém lá em cima, nos quartos. Naturalmente seria Maria de Fátima. Decidiu surpreendê-la antes de ir buscar os miúdos. Se ela quizesse, fariam amor. Enquanto subia as escadas, os sons tornaram-se mais nítidos e aquilo que começara por ser um restolhar parecia-lhe agora um murmurar. Maria de Fátima estaria no banho e cantarolava como tanto gostava de fazer. Mas à medida que vencia o espaço que os separava e os ruídos se tornavavam mais perceptíveis, as justificações que encontrava para os explicar esgotavam-se e a única que ainda sobrava requeria a sua presença e ele não estava lá. Dirigiu-se, tremendo, incrédulo, para a inequívoca fonte dos murmúrios: o seu quarto. Abriu a porta a medo, não fosse a vida cair-lhe aos pés.
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A porta está aberta. Maria de Fátima está escancarada e acolhe dentro de si outro homem.

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