Estórias ao Acaso: Noite Fria (VI)

Paira na repartição de finanças um sussuro de trabalho que a transforma numa espécie de colmeia em que cada abelha parece andar perdida e só, mas cujo labor contribui para uma arquitectura mais lata. Umas folhas que passam de mão em mão e deixam o som do papel vegueando, quase imperceptível, nos demais. Uns dedos dançando em teclados prostrados diante de monitores infectados pela doença dos papelinhos amarelos. Uns recados que se dão ao ouvido como se fossem segredos não o sendo, evitando só, um tom de voz mais pertubador. Umas passadas que cruzam a sala, uma fotocopiadora, uns telefones, uns carimbos que caem pesados pintando as folhas impressas, um som electrónico anunciando o próximo atendimento. É assim a vida na repartição. Cheia de ruídos mas quase silenciosa pelo tom abafado que se vai colocando em cada um. Acontece, pois, que sendo os homens, homens e as mulheres, mulheres e, como tal, dotados das abençoadas diferenças que os fazem perseguir-se, nem uns nem outros, embora elas tenham mais virtudes na matéria, conseguem em meio de cenários tão complexos e densos como uma repartição de finanças com dois pisos e diversas secretárias por piso, aperceber-se do quadro geral. Veio isto ao caso porque nos tempos modernos criou-se o salutar hábito de apresentar quem tem de ser apresentado e, por isso mesmo, plantam-se em cima das secretárias uns objectos acrílicos com o nome de quem lá está. Ou devia estar. No piso um da repartição, onde se aviam impostos municipais, i erre esses, i erre cês e tudo ao gosto do freguês, há uma secretária, ao fundo da sala, que jaz abandonada. O dito letreiro acrílico apresenta em letras azuis quem lá não está: Maria de Fátima Silva.
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Por umas escadas largas de corrimão inox escovado a acrescentar um ar asséptico à impessoalidade do local, sobe-se ao piso dois onde os impostos que se aviam são de outra ordem, sem atendimento ao público, mas em que a azáfama trabalhadeira é a mesma. Na igualdade própria dos open space, as secretárias são todas iguais, como iguais são as cadeiras e os computadores e os dossiês e até mesmo os letreirinhos acrílicos que aqui não fariam sentido porque não há público mas que, por razões de democrática e igualitária distinção, vão morrendo os dias com os nomes de quem se senta por trás daquelas mesas de trabalho. Hoje, sem que ninguém se aperceba da coincidência, o letreiro "Anselmo Oliveira" não usufrui da companhia do próprio. A um canto da sala, passando por uma pequena porta verde em fole, um corredor sossegado e sombrio abre o acesso a diversos escritórios que, pelo recato, deverão ser usados palas chefias. Ao fundo do mesmo, uma janela pequena e perra com vista para as traseiras lúgubres. À esquerda da janela um recanto com uma maquineta de café de que ninguém gosta mas a que ninguém se nega, aproveitando mais a pausa que o café. À direita da janela, percorrendo um recanto de dois metros, estaca-se uma porta de madeira de que só alguns eleitos têm a chave. Anselmo, pelas responsabilidades que detém, é um deles. Lá dentro, acotovelam-se os dossiês em estantes metálicas sepradas pelo tipo de processo e com numeração específica para cada pedaço de vida fiscal que ali se guarda. As estantes estão separadas por não mais do que setenta centímetros, o espaço suficiente para que a humana necessidade de consultar as percentagens de algum contribuinte seja satisfeita. Estas arrecadações são cada vez menos usadas e há até quem diga que vão desaparecer em breve substituídas por outras que levam o mesmo mas mais apertadinho ainda. Os computadores. E é fiando-se no pouco uso do espaço e na quase exclusiva utilização que dele faz Anselmo que os dois funcionários da repartição abandonaram os seus letreiros de acrílico para aqui se encontrarem. Ela, a pretexto do café, ele, de uma qualquer consulta. Ambos perdidos no burburinho e na imensidão do espaço e das gentes. Maria de Fátima sentou-se numa mesinha de poisar e abrir os dossiês, puxou-o para si e envolveu-o com as pernas fincando-lhe os calcanhares nas nádegas. Deitou a cabeça para traz e ele beija-lhe, sôfrego, o pescoço enquanto lhe percorre o corpo com as mãos masculinas e ávidas e tenta manter o vai-e-vem ritmado que a situação exige. Anselmo não é o homem que José António Cruz da Silva surpreendeu em sua casa.
-Maria de Fátima não gosta de fazer amor.
Maria de Fátima adora sexo e isso basta-lhe.
Adora o vigor e a pujança dos homens. Adora sentir-lhes o corpo suado e a respiração sôfrega e arfada. Adora acariciar-lhes os corpos e sentir-lhes os pelos por entre os dedos e não vê em nada deste prazer, assim dado e recebido, senão a dádiva e a entrega. Não vê o pecado nem a imoralidade. Nem os percebe. Maria de Fátima não peca. Vive assim a vida como ela lhe vai surgindo, como ela se lhe vai oferecendo e tira partido da generosidade com que a Natureza lhe presenteou os volumes e as formas.
Transporta consigo um brilho no olhar e uma malandrice no sorrir que anunciam o seu desejo e não sabe, já, quantos homens conheceu. Sabe só que nunca se arrependeu. Sabe que eles a desejam, que a devoram com o olhar, que a tentam com palavras e mãos que se desprendem dos ombros para as costas e por estas abaixo lhe tocam o anunciar das nádegas firmes: "Muito obrigado pelo esclarecimento, colega!". Ela a responder com um risinho, um olhar cúmplice, e tudo a acabar nos mesmos gestos sempre diferentes, sempre renovados conforme os actores e os cenários. Na arrecadação da repartição de finanças. No carro. Num quarto de hotel. Num apartamento ou, podendo ser, em sua casa, porque não?
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Sem se poder dizer que tenha nascido para mãe, Maria de Fátima cumpre, com dedicação e desvelo, as maternais obrigações e cuida dos filhos o melhor que sabe e pode. Dá-lhes o seu amor, a sua atenção e trata-os como se fossem o centro da sua vida. Mas não são. Ela sabe-o e não se mente isso a si mesma. O pequeno Marco e a mais pequenina Alice têm nos braços largos e macios da mãe bem como nos seus seios generosos e cálidos o amparo de uma vida e não vá já o leitor fazendo juízos errados pelo que sabe de Maria de Fátima porque estes filhos não trocariam sua mãe por nenhuma outra que se lhes oferecesse fossem quais fossem as virtudes que carregasse na alma ou no ventre.
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Maria de Fátima ama verdadeiramente, naquilo que é a sua verdade, a mais pura que encontra em si, o seu marido, José António. Não se arrependeu nunca de ter casado com ele, o melhor e mais afectuoso dos maridos, o mais dedicado e cuidadoso dos pais. Só lamenta que José António não seja tão bom amante como é marido. Que saiba tão bem fazer amor mas tenha tão pouco jeito para o sexo. O Amor dá trabalho, exige concentração, a entrega da alma e do sentir de dentro do corpo. No sexo nada se entrega a não ser o corpo por fora, instrumento de prazer e fruição, acto miraculoso de dar e receber pela pele, sem mais nada porque nada mais é preciso. Maria de Fátima não confunde o marido com os outros. A ele dedica-lhe tudo o que é e sabe. Com os outros abandona o corpo aos instintos do momento. Ele fica. É a trave da casa. Os outros passam. E nesta curiosa arrumação da vida, Maria de Fátima sabe que não é fiel ao marido mas acredita que é fiel à família! Por vezes dá consigo a pensar que os homens é que costumam ser assim. Pelo menos estava escrito numa revista esquecida na sala de estar do dentista. Por vezes crê-se pecadora, imerecidamente casada com um homem que merece mais e melhor do que ela consegue ser. Depois, acorda em si a pergunta que consigo anda desde a primeira vez que decidiu deitar-se com um homem: "Se eu não fizer isto nesta vida, quando o farei? Para que serve a vida, então? Se isto que agora faço, se este homem que abraço e não é o meu é pecado porque é excesso então pecou Deus primeiro porque me deu para viver vida demasiada!" E entrega-se!
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Voltemos à porta que deixámos aberta quando José António chegou a casa e surpreendeu a vida...

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