Estórias ao Acaso: Noite Fria (XII)

Por razões que nunca procurou perceber, ele empenhou-se mais no jantar do que no resto da noite.
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Colocou toda a paixão de que era capaz na escolha do restaurante. Lugar tranquilo, urbano mas longe da centralidade ruidosa da cidade. Distinto. Reservou a mesa. Deu instruções precisas acerca de como a queria colocada. As velas, o frappé de pé, uma série de indicações desnecessárias que o pessoal do restaurante aceitou com benevolência e que, para eles, seria o repetir dos mesmos gestos de todos os dias. Para ele, seria mais do que uma refeição: um hino ao amor e à dedicação. E flores na mesa. Queria flores na mesa. Seleccionou da carta para aquele dia os pratos que lhe pareceram mais adequados ao carácter dela. E, se algo houve de extraordinário da sua parte na preparação do jantar das suas vidas, foi que nem por um segundo, nem por uma vez só, ele pensou em si, no seu gosto, nas suas opções. Aquele conjunto de tarefas e decisões para preparar o jantar em que celebrariam o seu amor foi toda uma dádiva.
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Escolheu um hotel perto dali para que pudessem caminhar entre o restaurante e o quarto e a conversa seria a preparação do que havia de seguir-se, o amor primeiro antes do outro, os preliminares dos amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Fez questão que fosse digno mas não se aprimorou nos requintes. Aquele seria um espaço para a conversa dos corpos, que falassem, pois, sem muitas ajudas nem acessórios.
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O dia correu veloz e miudinho. As coisas importantes pareciam-lhe banais, as banais dispensáveis. A sua ansiedade transportou-o diversas vezes ao local onde haveria de estar esta noite. Preparou frases, discursos, tiradas românticas e sérias e só mais tarde se aperceberia de que quando os amantes amam nada disso é necessário.
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Ela está sentada à sua secretária de trabalho com um sorriso nos lábios. Sabe, de certo, que ele se esforça e, ao contrário dele, está tranquila. Quando uma mulher decide entregar-se, quando decide colocar a sua vida nas mãos do homem que ama, o mundo fica harmonioso e a força da decisão dota-a de firmeza e tranquilidade. O problema é chegar a decidir. Uma vez dado esse passo, resta abraçar a vida e nisso as mulheres são ímpares. Atravessou-a, ao longo do dia, um sentimento de alegria e segurança. Dedicou-se às pequenas tarefas como se fossem importantes e tratou as importantes com a atenção que mereciam. Não se preparou. Vinha preparando-se há quinze anos e esse tempo bastara-lhe.
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A sala tem as luzes eléctricas propositadamente suavizadas e emerge o tom amarelecido das velas cujo odor cruza o espaço e predispõe as mentes para o coração. As flores são brancas e frescas. Alguém as salpicou porque estão orvalhadas e as gotículas de água rebrilham a luz envelhecida que os envolve. Além deste que nos interessa, estão por aí mais uns quantos casais, vários deles igualmente apaixonados. Nota-se no brilho do olhar, na abertura do rosto, no toque suave das mãos. É isso que ele está fazendo. Tem uma mão estendida sobre a mesa e brinca com os dedos frágeis dela. Ela trouxe um vestido preto, com um decote discreto e todo folhado. Dá-lhe mais volume do que realmente tem mas, sobretudo, confere leveza ao negro. Não tem jóias. Nem delas precisaria. As jóias que ela usa para embelezar-lhe a figura são as palavras bailando-lhe nos lábios, acariciando-lhe o coração, musicando-lhe a existência. E é por isso que ele está feliz.
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À excepção de uma frase dela, mais adiante revelada, não nos interessa muito o que disseram os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Interessa-nos como o disseram. O tom da voz dele foi sempre pausado e ligeiramente grave. Ela foi mais límpida na voz e informal na atitude. Riu diversas vezes e depois olhou em volta como uma menina traquina que acabou de fazer alguma. Estava provocando-o. Ele aderiu e brincou também... Não fizeram juras de amor. Essas estavam feitas e não careciam repetição. Ficaram elogiando-se mutuamente as virtudes que é virtude da paixão esconder os defeitos aos olhos dos amantes.
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Conversaram muito e francamente. Construíram, ou melhor, solidificaram ali uma relação de amizade com aquela consciência que os humanos vão tendo de que os amantes crescem nos alicerces da amizade. E o mais extraordinário foi revelarem-se pormenores inéditos das suas vidas, gostos, pequenos pecados, rotinas, algumas alegrias e uma ou outra tristeza que qualquer um deles fez questão de atenuar.
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Estavam saindo, inspirando o ar frio da noite, dando o corpo ao negro véu que todos os dias se abate sobre esta nossa Terra. Estavam preparando-se para continuar a amar-se com outras linguagens quando ela falou perguntando e surpreendendo:
- Levas-me a ver o mar?

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