Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIII)

Ela era uma mulher de mar. Tranquila e serena como só o mar. Agreste e revolta como só o mar. Firme. E, sobretudo, de uma alma imensa mergulhada na tranquilidade que soube conquistar à vida. Tinha no andar o ondular suave de certos mares e tinha no olhar o horizonte dele!
-- Claro que sim. Vamos ver o mar.
-
A viagem durou poucos minutos. Ou, pelo menos, poucos lhes pareceram. No caminho, ele foi tocando a mão que ela abandonara no regaço. E estiveram brincando, mais do que conversando. E as palavras que trocaram foram sobre o jantar, primeiro, como tinha constituído um momento belo e intenso, uma harmonia de estarem juntos. Depois falaram do mar como se antecipassem vê-lo. E andaram vagueando nas palavras, trocando ideias com elas e trocando-as a elas pelas ideias até que o mar se anunciou. Primeiro, pela força do som que estremece a terra. Depois, pelo branco da espuma a encristar a ondulação atlântica.
-
Quedaram-se sentados, recostados nos seus bancos, de mão dada, só. Sendo que dar as mãos e estar em harmonia não é coisa pouca nem com pouco se faz ou desfaz. E ali ficaram longos minutos contemplando a sequência irregular das batidas com que o mar vai castigando a areia. Os seus pensamentos separaram-se por momentos e enquanto ela imaginava a felicidade que seria ter este homem só para si, ele estava já fazendo amor com ela na bruma espessa da imaginação. E surpreendeu-se imaginando que estava com ela estando com ela. Os seus pensamentos reuniram-se de novo num ponto comum. Nenhum se movia, nenhum articulava uma palavra que fosse, nem pareciam pestanejar olhando o negrume do oceano nocturno cortado pelo brilho alvo na crista das ondas e desejaram ambos que aquele momento cristalizasse. Que parasse já o Universo porque a vida estava vivida. Ela, ou o que dela merecia ser vivido. Ficaram desejando o fim para que aquela noite fria de contemplar o oceano no calor das mãos dadas fosse a sua eternidade.
-
E aconteceu aquele acontecer entre as gentes, quando estão juntas e em silêncio, que é o silêncio não poder durar sempre e ser interrompido, em simultâneo, pelos dois. Não que quisessem falar um por cima do outro, ou primeiro do que o outro, mas porque até no estender do silêncio à luz da palavra articulada estavam em uníssono:
- Sabes que...
- Queria...
- Sim, diz...
- Não, tu primeiro...
- Seja, um de nós terá de dizer primeiro: queria que a vida parasse agora e restasse em nós só a memória desta noite.
- Sabes que não me importava de morrer já, se a morte fosse prolongar este momento pelos tempos todos.
-
Mais não disseram porque mais não precisava ser dito. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras calaram as palavras. Inclinaram-se um para o outro e foram percorrendo o caminho do desejo até que estivesse eliminado qualquer espaço entre si. Juntaram os lábios num beijo suave de aqui me tens, sou tua, aqui estou, sou teu. E abraçaram-se como se conseguem abraçar os amantes no espaço exíguo de um carro.
- Somos loucos!
- Pois somos. Saudavelmente loucos!
-
Ele inventou algum espaço mais entre o volante e o banco puxando-o para trás. Recostou-se e poisou o seu cotovelo na porta desenhando um triângulo com o braço. E foi nesse recanto, entre o coração e o braço dele que ela foi encostar a cabeleira farta anichando-se no seu colo. E ali, de frente para o mar, esqueceram-se do quarto. Tapou-lhe as formas delicadas do corpo com o sobretudo e deixou as mãos navegarem o seu corpo por baixo do vestido. Beijaram-se. Continuaram a beijar-se. Acariciou-lhe os seios e acabou beijando-os também. Só não viu que eram rosados porque a noite escondia esse segredo. E que não escondesse, não veria na mesma porque tem os olhos fechados. Basta-lhe o tacto, o odor e o retorno dos movimentos dela. A Natureza viu a intimidade dos gestos crescer e juntou à discrição do breu nocturno o embaciado dos vidros. Num puxão seco e forte, rompeu-lhe a tira frágil da lingerie e acariciou-lhe o calor húmido do sexo. Ela ajeitou-se no espaço, entregando-se à carícia. A noite corria perfeita. Estava perfeita. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras inauguram outras linguagens e exploram universos onde as palavras sabem a pouco. E estão neste afã dedicado e ferveroso quando um ruído abafado e artificial corta o silêncio e o murmurar sensual que o enfeitava. Um telefone, por prudência ligado, por artificial ilusão de privacidade deixado em modo de vibrar, vibrou. Era o dele. A outra vida estava ao telefone. Ela endireita-se no seu banco, ajeita as roupas e recompõe a figura como se a voz que do outro lado clama "Estou? Quem fala? És tu?" estivesse ali batendo na janela do carro tentando ver para além do embaciado. Sentiu-se violada na sua privacidade e, ao mesmo tempo, sem direito a ela! Ele compôs mais a voz do que o resto, que as mãos dela também haviam feito despojos de amar, e saíu do carro como que a querer separar os dois mundos, as duas vidas. Como que a querer preservar esta da intromissão invasiva da outra:
- Disse para me ligares só em caso de urgência... O quê? Quando? Sim, claro. Para já!
-
Regressa ao carro e ainda não chora por fora mas traz já o peito despedaçado, a alma desiludida. Ainda não teve tempo para nada senão para reagir à presença da outra vida nesta, ainda não consegue vislumbrar o dia perfeito e a perfeita noite desfazendo-se debaixo dos pés e sente já um corte profundo, uma ausência, uma lástima. Reentra no carro, senta-se. Olha em frente o mar esbracejando e sacudindo, com violência, a areia. Respira fundo. Encontra coragem para encará-la nos olhos e diz num tom de voz controlado e sério:
-Tenho de ir!

NetWorkedBlogs