Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIV)

O Carro engole, veloz, os traços descontínuos que separam as vias. Ele desliza em excesso de velocidade. Sabe-o. Ignora-o. Vive uma vertigem de loucura e, súbito, a sua vida parece ter perdido importância. Mergulha na estrada nocturna direito à vida que o espera, que clama por ele e que o mata. A raiva que sente não é contra ninguém. Não é contra ela cujo semblante meigo e doce recorda em flashes que magoam a alma e apertam o peito. Não é contra a outra vida, nem ninguém nela. Percebe onde pertence, a quem pertence, percebe as suas responsabilidades e as prioridades a que obrigam. Percebe que a força da outra vida se sobrepõe e domina esta. Só não percebe porque tem de ser assim. Só não percebe porque nos dá Deus tantas vidas e nos obriga depois a escolher uma, a viver uma, amarrados a um percurso. A raiva que sente é contra esta impotência, é contra ter sabido que estas vidas haveriam de colidir, que uma decisão assim teria de ser tomada, e não poder salvá-las ambas, não poder vivê-las ambas. Recorda com carinho os momentos de amor que acabara de viver, o jantar, o mar, as carícias, o quase fazer amor que valeu por muitas vezes em que o ritual fora vivido sem chama. Recorda e revolta-se de novo. Este homem que aqui vai conduzindo um carro, conduzido pelos desencontros da vida, vive o que deve mas não vive o que quer e deixa para trás uma vida quebrada. Sente no peito um aperto, o aperto de saber que algo se quebrou. Consegue convencer-se de que lhe ligará, de que voltarão a fazer tudo de novo, de que recuperarão a aura e a energia de amar que pairou naquela noite perfumada de velas e mar. Mas sente um aperto no peito e identifica-o. É o receio, o medo de que algo se tenha quebrado para sempre. Não sabe porquê mas teme-o.
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À medida que a estrada sucumbe à sua passagem e o espaço que o separa de quem o espera se encurta consegue lembrar-se dos últimos momentos com ela, das últimas palavras que trocaram.
- Tenho de ir!
- É grave?
- É um dos miúdos. Está no hospital. Teve uma crise...
- Não te expliques. Vai. Precisam de ti...
- Sim, há coisas a tratar. Numa situação destas uma só pessoa é pouco.
- Sim calculo,vai...
- Podíamos fazer uma coisa, eu deixo-te no hotel, fazes o check in e esperas por mim. Regresso esta noite, quando muito de madrugada e podíamos...
- Não penses nisso. Não me peças isso. Agora não te peço nada, estás preocupado, é natural. Mas peço-te que amanhã ou um dia destes penses em mim, em como me sinto, assim, embaraçada, envergonhada. Isto acabaria por acontecer e sentiria sempre a humilhação de não poder reclamar para mim uma pessoa que amo tanto. Mas o facto é que não posso... a sério, vai...
- Deixa-me ao menos levar-te a casa.
- A casa, não, deixa-me uns bons metros antes para eu poder andar, preciso de andar.
- Obrigado. Amo-te!
- Também te amo!
-
Quando ela pronunciou estas palavras de amor, ainda eram palavras verdadeiras mas já não eram palavras abertas à vida e prenhes de esperança. Eram um epílogo. Ficou a uns bons quinhentos metros de casa e caminhou. Não temeu a cidade nocturna. Não sentiu o frio. Perdeu-se numa profunda conversa com a sua consciência. Precisava perceber o que acontecera, precisava situar-se e não sabia qual, mas sabia que precisava tomar uma decisão...

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