Estórias ao Acaso: Noite Fria (XV)

Ela não sabe ao certo quantos metros andou que não têm os humanos como medir senão com instrumentos ou por cálculo que sempre falha na precisão. Instrumentos não os tinha consigo pois vinha de uma noite de amor e desilusão e não estava ali porque andasse a medir espaços. O cálculo estaria sempre perturbado por tudo o que lhe ia na mente. Sabe o narrador desta estória que andou uns quinhentos ou seiscentos metros. Sabe ela que andou muito. Não pelo espaço percorrido mas pelo tempo passado. Têm os humanos esta particularidade que é a de medir o espaço em tempo. Habilita-nos isso a avançar que a distância normalmente percorrida em dez minutos, ou pouco mais, levou desta vez uns bem medidos quarenta e cinco minutos de reflexão, pensamentos turtuosos, avanços, recuos, decisões, indecisões e uma profusão de ideias e impulsos de acção que disparavam nas mais diversificadas direcções do sentir. Por vezes, estando a mente mais perturbada, parava o corpo e ficava olhando o chão, fitando uma árvore, um prédio para os quais olhava mas na realidade não via. Diversos foram os momentos em que apontou a biqueira elegante do sapato ao chão e ficou traçando o mesmo círculo até se perder o pensamento que estava conversando consigo. Outra curiosa e humana particularidade é a de percorrer-se caminho e não saber depois o que se percorreu, é a de andar entre a gente e não ver ninguém. Não foram muitas as pessoas que se cruzaram consigo. Um casal jovem e apaixonado, vestido de negro e cabedal, correntes pendentes da roupa e um cão rafeiro que os seguia. Dois homens, um alto e forte e o outro forte e baixo, os dois fumando e falando de futebol, mulheres e marcas de carros. Passou ainda um casal de jovens, ele de corpo esguio e cabelo espetado no espaço a afirmar a sua diferença, o outro dos jovens, também ele, tinha uma face mais clara, um olhar mais tímido e falavam de música, da que gostavam e da que não gostavam, levavam as mãos unidas e trocavam beijos pequeninos e furtivos.
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Nada disto ela poderá algum dia garantir que viu. Jurará mais facilmente que percorreu toda a distância da sua humilhação sozinha, jurará que não havia ninguém na cidade nessa noite fria.
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Este não foi um caminho de alívio. Começou por andar, como disse, porque precisava e terminou percebendo que andar não bastava. Esta mulher jovem e bonita que aqui vemos, deambulando e parando e evitando o caminho de casa e da cama onde a solidão e o desespero acabarão por vencer, sente-se humilhada. Não lhe disse a ele, mas, no momento em que ele atendera a chamada que interrompeu o amar nocturno, sentiu medo da voz longínqua e metálica do outro lado do telefone. Não percebia as palavras, mas senti-as como facadas cravadas nas suas faltas, nos seus pecados. Sentia-as como o castigo que temera mas ignorara por amor. Sentiu-se como a criança que fora apanhada a meio da malandrice e a quem não resta senão encolher os ombros e olhar o chão. Estava, por isso, envergonhada. Envergonhada de usar uma liberdade que não era sua. Humilhada por não ter antecipado a vergonha. Por se ter roubado a si mesma e conscientemente a liberdade de responder, de reclamar, de exigir, este homem é meu porque o amo, porque o tenho para mim como me tem para si...
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Quando entrou em casa sentiu-se uma estranha no seu próprio espaço porque nunca havia ali entrado tão vulnerável... que fazer agora? Aguardar um telefonema? Esperar que a vida resolva os problemas que eram seus por si criados? Não. Ao menos a dignidade de decidir as suas passadas. Com a coragem que lhe restava conseguiu emergir senhora de dois cenários, conseguiu configurar duas possibilidades de vida. Qualquer uma delas exigia que agisse. Digna e honesta. Ou lutaria por ele e usaria de todas as suas forças para que entrasse definitivamente na esfera da sua vida, ou o abandonaria à vida que o tinha preso oferecendo-lhe a liberdade absoluta de decisão. A primeira implicaria mais determinação, o assumir do curso da vida. O preço a pagar poderia ser elevado. Ninguém gosta de construir a sua felicidade em cima da infelicidade de outrém! A segunda seria mais cómoda na acção mas mais dolorosa porque é de dor que falamos quando alguém abdica de um amor! A segunda implicaria também que se afastasse porque não se dá liberdade a outrém interferindo no seu julgamento.
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Esta mulher bonita e dilacerada que aqui vemos de roupão e cabelo molhado vem do duche. Tentou lavar a alma com água quente e shampô. Reconfortou o corpo. A mais não teve direito. Procurou a cama e fechou-se nela. Cobriu a cabeça na tentativa inglória de apagar o mundo à sua volta. Está enroscada, em posição fetal e, se pudesse e tivesse coragem para tanto, chamaria sua mãe e pediria um mimo, um carinho, uma palavra de perdão. Mas há coisas que passam o seu tempo na vida e deixam de poder pedir-se. Esta mulher que aqui vemos no breu dos lençóis cobrindo a sua existência e a vergonha dela está soluçando baixinho quase como se não sentisse no direito de chorar. Sente que, como Ícaro, desejou demais, quis o sol da vida e acabou vítima dessa ambição. Encolhe-se um pouco mais sobre si mesma. Parou o choro. Só conseguiu adormecer depois de decidir-se por uma das duas possibilidades de vida que encontrou. Decidiu viver e o critério seria a dignidade!

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