Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVI)

O silêncio é profundo. O ambiente é de trabalho concentrado e os diversos colegas que partilham o espaço não querem comprometer tal concentração. Paira no ar um silêncio de produção. E esta harmonia de fazer em conjunto e em conjunto feita é cortada pelo toque inevitável do telemóvel dele. Normalmente desligá-lo-ia sem hesitar, procuraria um lugar onde pudesse falar e ligava de volta a quem quer que fosse que lhe tivesse tocado à porta da vida. Desta vez, não pensou duas vezes, não esboçou gestos incertos, levou o telefone ao ouvido e atendeu-o. O nome dela brilhava no visor e aquela ligação era mais para si do que um telefonema. Era a vida a reconectar-se. Com o aparelho encostado ao ouvido foi-se retirando da sala de trabalho sob o olhar acusador dos presentes. Um deles chegou mesmo a abanar a cabeça em sinal de reprovação enquanto pensava se aquele tipo não sabia que havia modo silencioso. Acontece que há coisas mais fortes do que outras e este telefonema fá-lo-ia nem que tivesse de sacrificar a reputação no trabalho. Não foi preciso tanto e a conversa aconteceu na mesma e mais ou menos como a seguir se verá.
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- Olá! Ainda bem que ligaste. Queria tanto falar contigo.
- Sim, temos muito para conversar. Também preciso muito falar contigo.
- Ouve, queria começar por pedir-te desculpa...
- Não faças isso. Não há desculpas a pedir. Pelo menos a mim. Olha, como está o teu filho?
- Está bem mas tinhas razão só nos despachámos do hospital no outro dia quase à hora de almoço e foi preciso levar o mais velho à escola e a farmácia e... Mas olha, não falemos disso. Temos tanta coisa para conversar. Aconteceram coisas tão bonitas...
- Sim, aconteceram. Mas também aconteceram algumas que me fizeram pensar muito.
- Eu sei, pensei nisso tudo e acho que temos de viver a vida... ela é tão curta e nós amamo-nos tanto. Amo-te muito.
- Também te amo muito. Sabes, estou a desviar-me um bocadinho daquilo que queria dizer-te...
- Sim... diz.
- Eu não queria falar contigo sobre nós ao telefone. Queria olhar-te nos olhos e queria que me olhasses nos olhos. Tu podes, sem te forçar a nada, vir até aqui para conversarmos um bocadinho?... não precisa ser hoje...
- Mas será!
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O narrador desta estória está perturbado com o valor e com o poder das palavras. Quando lhe disse há pouco o que queria que narrasse ripostou-me que esses mesmos gestos já os narrara uma vez nesse mesmo cenário afirmando que eu, enquanto autor, me estava a repetir. Julgo, até, que insinuou que eu estava ficando senil. Foi então que lhe disse que seria tudo igual excepto as palavras e quando pediu que lhas revelasse para as poder narrar ripostou, sério, mas essas palavras mudam muito, mudam tudo. São outros gestos. E ali ficámos conversando, autor e narrador, sobre as palavras enquanto gestos, se não seriam o mais fundamental deles, o mais poderoso e, simultaneamente, o mais banal. Condordámos, inclusive, que a expressão olha para o que eu faço, não olhes para o que eu digo é absolutamente ridícula porquanto dizer é já fazer também.
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Encontraram-se no mesmo local do primeiro reencontro, sensivelmente à mesma hora. O sol tinha menos força agora e o abraço que deram teve menos corpo, teve menos tempo, foi igualmente cúmplice. Não é que não sentissem o mesmo amor e a mesma paixão que sentiam então, acontece porém, que a mesma vida que os unira estava agora intrometendo-se entre eles. E um abraço longo, de total dádiva, de peito aberto e alma limpa não se dá quando há assuntos pendentes estorvando a clarividência da mente e a limpeza dos gestos. Os passos dos amantes aprendem os caminhos do amor e as suas passadas repetem-se e os corpos andam enquanto os amantes dizem as coisas que precisam dizer. Talvez por isso, ele e ela percorreram as mesmas ruas, junto aos mesmos prédios do mesmo lado do passeio e crê-se, até, que se tenham cruzado com a mesma velhinha. As palavras não foram as mesmas. Não foram o crescendo de emoção que haviam sido, não foram o exteriorizar de corações sobressaltados pela paixão nem levavam consigo o brilho que o olhar tivera então. Estas palavras que vão trocando agora são banalidades de como está o tempo, como vai o trabalho, estás bonita, bonito estás tu. Palavras que não dizendo nada tinham uma função. Adiavam as outras que haveriam de ser ditas quando pudessem olhar-se nos olhos.
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Como se soubesse a cidade inteira que estes dois precisam conversar, o banco onde se haviam enroscado nas memórias gratas e sentidas do passado está livre. E é nele que se sentam. Não é um jardim rebrilhando a luz de um dia de Verão. Não tem essa alegria nem essa pujança mas a penumbra que se anuncia aos poucos dá-lhe um ambiente mais privado. Ali estão, olhos nos olhos, as mãos entregues umas nas outras, o olhar terno encontrando-se o amor, perscrutando-se as possibilidades e as impossibilidades. No peito dele cavalga um coração ansioso e expectante. Moram em si as esperanças todas. Pensou em tudo que precisava dizer-lhe para retomarem a rota do amor e da felicidade. Trata-se de uma expectativa peuril e masculina. Pueril porque encara cada situação como uma oportunidade para além de todas as contrariedades. Masculina porque, vencido o susto e a tormenta de uma noite perfeita desfeita pela evidência de não poder separar em si as duas vidas que tem, está já separando-as de novo.
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- Meu amor, minha querida, queria tanto, precisava tanto dizer-te tantas coisas. A minha cabeça ferve, o meu coração bate louco. Fiz tanto para que estivessemos juntos, para que o amor que nos une se revelasse e depois...
- Espera! Deixa-me falar a mim hoje. Eu sei tudo o que te devo. Eu sei e relembro com um amor imenso todas as coisas extraordinárias que me fizeste sentir. Eu sei como te dedicaste a nós, ao nosso amor. Eu amo-te muito, mas hoje deixa-me falar primeiro. Sabes, quando uma mulher ama só o consegue fazer com dedicação total e total compromisso. Uma mulher que ama fá-lo na entrega absoluta do seu ser. É a única altura em que fica vulnerável. E não espera nada de volta. Dá por dar, porque é essa a sua condição. Mas só pode dar a um homem que seja seu, que lhe garanta a segurança do seu amor e que esteja disponível para retribuir-lhe. Eu não posso chamar-te meu, meu amor! Não posso mentir-me e dizer que temos um futuro juntos. Tu tens um futuro, tens uma vida e eu estou aqui e não vejo o meu futuro, nem vejo que vida seja esta em que te amo e não posso amar-te se um telefone tocar. Tu não és meu. Meu querido, eu sou mulher como a tua mulher e morro por dentro sempre que penso que podia estar no lugar dela e imagino o que desejaria que ela fizesse se estivesse no meu. Ela ama-te como eu te amo e penso até que não tem mais legitimidade do que eu para amar-te porque não há regras no amor, não há legitimidade para o que o nosso coração sente, mas ela tem a legitimidade de esperar por ti, de sentir a tua falta. Tem a legitimidade de chamar por ti quando precisar de ti. Ela tem a legitimidade de projectar a vossa vida e esperar que os vossos planos se cumpram no amor que se têm. Eu sei que estás dividido e, mais tarde ou mais cedo, terás de decidir-te mas eu não quero estar por perto quando o fizeres. Não quero determinar as tuas acções. Tens de ser livre para construir o teu caminho. A tua mulher é a tua mulher e eu amo-te e amei cada segundo que estivemos juntos, cada carícia, cada palavra, mas não consigo ser a outra, não consigo pensar na minha felicidade contruída sobre a infelicidade da tua mulher e dos teus filhos. Amo-te, não duvides nunca disso, não duvides nunca de todas as coisas que te disse, mas não posso amar-te. Quero-te mas não posso querer-te. Não assim. Se tivermos de ser um do outro, seremos, mas noutras circunstâncias, sem culpa, sem receio que uma voz metálica no outro lado do telefone estrague uma noite de amor porque não é legítima... Tens de ser livre para viver e amar. Tens de fazer as tuas escolhas e eu tenho de ter a mesma liberdade. Tenho de ter a dignidade de amar livremente. De amar plenamente. De amar tranquilamente.
- Mas, meu amor...
- Chiiiiiuuu! Disse ela baixinho, quase sussurrando, e foi apressando-se, carinhosa, em colocar-lhe um dedo nos lábios para o silenciar. Olhou-o ternamente e quando tirou o dedo dos lábios dele foi para colocar no seu lugar os seus próprios lábios e beijá-lo com ternura mas sem paixão.
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Levantou-se e caminhou afastando-se dele, deixando-o nas suas costas enquanto as lágrimas se precipitavam no seu rosto...

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