Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVII)

Vertendo-se com frequência e facilidade as palavras em sentimentos, o que este homem mais sente é NÃO. Não à impossibilidade de um amor que o despertara para a vida. Não ao fim das palavras entre os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Não à forma absurda como se interrompeu uma noite de amor. Não à forma lúcida e racional com que ela pusera um fim ao que parecia não ter fim. Não.
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E os dias foram-se sucedendo e com eles foi crescendo esta revolta surda e amordaçada de quem quer gritar um amor e tem de o calar. À medida que os dias passavam e com eles as pequenas coisas e os pequenos gestos que os preenchem se acumulavam foi desdenhando cada um deles, dos gestos e dos dias. Negou de si para consigo a aceitação daquela decisão. Planeou vezes sem conta falar com ela, fazer-lhe juras de amor, prometer-lhe uma vida, abdicar de tudo e ser só seu. Planeou. Mas não executou. Sempre que estas ideias lhe ocorriam seguia-se um sentimento de crime e impunidade se abandonasse a sua família, aquela que construíu com as suas próprias mãos e os gestos delas. Após a negação da morte daquele amor e daquela relação de entendimento e sintonia, veio um tempo em que decidiu aceitar que haviam na sua vida duas mulheres, duas paixões, duas dedicações que se lhe tinham atravessado no caminho em alturas distintas do seu curso. E constatou. Constatou as duas mulheres que amava, os seus odores perfumados distintos e insubstituíveis, os seus timbres de voz marcando presenças e tonalidades diferentes nos dias, as suas peles suaves, os seus olhares, os sorrisos, as roupas, as palavras, as cumplicidades e o calor terno dos lábios de ambas. Aceitou que tinha uma só vida mas que nessa vida haviam duas mulheres. Não se substituíam, nem tão pouco uma poderia ocupar o lugar da outra. As duas tinham um espaço próprio na sua alma e no seu peito.
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Acontece que o tempo tem um efeito domador das vontades nos homens. E a distância é um bálsamo para a ausência. E ela, lá longe, guardava consigo as palavras que agora não trocava com ele. E ele percebeu. Percebeu e aceitou. À medida que foi retomando as rotinas desta vida aqui presente, aquele que havia sido um amor intenso e fulgurante começou a constituir-se bruma e névoa da memória. Ao cabo de uns meses, a custo de dor, que é pior do que cortar um membro isto de calar um amor, foi aceitando. Aceitou a distância. Aceitou a decisão dela. Nunca a compreendeu exactamente. Para ele, ter-se-ia reatado o caminho do amor e ter-se-ia feito um hino ao amor e à glória da entrega. Ele amaria lá e cá. Seria capaz de abarcar no mesmo peito dois amores diferentes. Mas soube aceitar. Soube respeitar a vulnerabilidade dela, compreendeu o seu ponto de vista e a sua atitude e amou-a mais por isso. E, ao mesmo tempo, foi reamando quem o amava nesta vida. Nunca se decidiu verdadeiramente por uma delas, das mulheres e das vidas com elas, mas a presença duma e a ausência da outra apagavam a ausente e reacendiam a presente.
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Hoje, neste dia de sol promissor, decidiu oferecer-se um café numa esplanada onde estão as gentes contemplando o tempo que passa, sentando-se na tranquilidade da tarde e pensando que o Céu bem podia ser assim. E está neste passar dos tempos limpando os pensamentos excedentes do cérebro bem como os contactos inúteis do telemóvel quando redescobre uma mensagem: "Amo-te incondicionalmente e para sempre!" Ficou pensando que para sempre era um valor extremado e absoluto como o era também incondicionalmente. E ele que pensara que havia nas razões dela para o abandonar toda uma lógica, toda uma gestão de sentimentos, todo um sentido ético e moral, sobressaltou-se pensando que poderia ter-se tratado, só e sem mais, de um sacrifício na impossibilidade de uma realização. Ela tinha, como todas as mulheres, um apuradíssimo sentido de posse e preferia não ter aquele homem para si em medida nenhuma do que partilhá-lo. Esta hipótese acordou-lhe a imensidão do gesto dela. A grandiosidade do seu amor. O tempo que levara a perceber isto...
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E, súbito, como se a sua mente tivesse escolhido aquela tarde de esplanada e café forte à luz de uma promessa solarenga para as revelações interiores no encontro de si em si, percebeu que ainda não tinha feito nada. Limitara-se a esperar que uma das suas vidas sucumbisse à outra. Não tinha havido da sua parte um gesto de coragem, uma decisão, um agarrar da vida. As mulheres que o rodeavam debatiam-se por si mais do que ele próprio. Constatou em nome da sua dignidade que a vida não consiste em esperar que a vida aconteça mas é, antes, determinada pelas nossas opções e actos. Havia pensado muita vez nas consequências dos seus actos em terceiros e deixara-se condicionar por isso. Faltava pensar em si próprio. No que queria. Convencera-se de que a lógica dela para o rejeitar era válida porque se acomodara e não se dera ao trabalho de perscrutar a sua própria lógica.
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Tinha numa mão uma vida de partilha construída a dois, depois a três e por fim a quatro, uma família. E também uma rotina e muitos cansaços. Tinha na outra a promessa de um amor puro e dedicado, de uma força, de uma companhia. Não podia continuar a ignorar que havia duas vidas que o disputavam, nem podia continuar a adiar optar por uma delas.
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Quando se levantou da esplanda e deixou umas moedas jazendo à volta da chávena do café e encarou a luz promissora da manhã, já sabia no seu íntimo o que ia fazer mesmo que a decisão ainda não tivesse chegado à superfície.

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