Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIX)

José António Cruz da Silva reaprendeu a ser feliz. Têm as mulheres e os homens esta particular capacidade de apagar o sofrimento quando é demasiado intenso, ou de atenuá-lo. É assim como que uma anestesia para as vivências mais difíceis de suportar. Vem isto ao caso de José António porque não se esqueceu ele de ter encontrado sua mulher na cama de ambos visitada por um estranho em seu seu lugar, gemendo e entregando-se a outro. Não se esqueceu da noite fria e chuvosa em que caminhou perdido pelas ruas que tão bem conhece. Ia mais perdido nos pensamentos do que no traçado da cidade. E não se esqueceu, sobretudo isso, da profunda mágoa e do intenso sofrimento que sentiu nesse dia. Não esqueceu. Mas apartou. Funciona este fenómeno assim como quem põe de lado, no prato, os alimentos de que não gosta. Estão lá mas é como se não estivessem. A ferida de José António está aberta mas não sangra. Encontrou em si causas e razões para o comportamento reprovável da mulher e reprouvou-se, recriminou-se e decidiu mudar. Traz na mente aquela nuvem que de quando em vez o sobressalta na tranquilidade dos dias que vai vivendo acomodado. É como se fosse um relógio de corda que o vai acordando periodicamente para a realidade, olha lá José António, põe travão nessa pontinha de felicidade, não ta permitas, lembras-te o que ainda há pouco tempo te aconteceu? José António não te entusiasmes com a vida nem confies na tua mulher que quem o faz uma vez, mil o fará pois que quebrada está a fronteira, aberta está a caixa daquela a que chamaram Pandora. E assim vai vivendo de tranquilidade em tranquilidade, de sobressalto em sobressalto, confiando, desconfiando, amando, acompanhando os filhos, descontando no rosário da vida um dia de cada vez vivido no único universo que conhece e domina, o da sua família.
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Aqui onde o vemos, está sentado à mesa da cozinha com a família. Maria de Fátima à sua frente na outra ponta, a pequena e franzina Alice à sua direita aceitando aviões-colher-de-sopa, vruuuummm, esta é pelo o papá, vruuuummm, esta é pelo mano... e à sua esquerda o pequeno, menos pequeno, é certo, Marco das conversas de bola na aventura dos recreios da vida, Marco de querer saber tudo acerca dos dinossauros. José António conversa com o filho, brinca com a filha, pisca um olho a Maria de Fátima, faz-lhe um sorriso doce e perscruta-lhe os desejos e as necessidades com o intuito genuíno de os satisfazer. Se lhe falta o pão, vai buscá-lo. Pôs a mesa, aqueceu o jantar, dá de comer aos miúdos, repara que o guardanapo dela está já usado por usado ter sido e vai buscar-lhe outro, traz uma faca para o queijo, limpa a boca à pequena Alice que está tentado comer sozinha, tira dois cafezinhos de uma maquineta a imitar aquela do anúncio mas mais barata, levanta a mesa, ajuda o filho com os trabalhos de casa, brinca com eles um pouco, conversa com Maria de Fátima acerca da novela por que finge interessar-se, ou se interessa não querendo mas sendo verdadeiro no seu propósito, veste o pijama aos miúdos, vai deitá-los com Maria de Fátima, conversa com ela acerca do dia que está terminando e quando vai deitar-se fará amor com ela se ela assim o quiser e caso não queira adormece cansado e insatisfeito mas realizado.
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Desde que decidiu mudar, José António está empenhado em ser um marido melhor, um pai melhor, um homem melhor. Está mais presente, sempre presente, é atencioso, carinhoso, voluntarioso, sacrifica-se pequenos prazeres e rituais antigos e emprega em seu lugar toda a sua energia a realizar a felicidade da sua família.
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José António anda exausto e não se sabe até quando aguentará este estado de coisas mas a sua determinação é total. E é na medida da realização das necessidades, das vontades e desejos daqueles a quem chama seus que este empregado da contabilidade se sente feliz. E é por sentir-se bem e realizado na realização dos outros que podemos dizer, como fizemos no início deste capítulo, que José António reaprendeu a ser feliz. Mas a vida é injusta ou, não sendo injusta é cruel ou, não sendo injusta nem cruel, é vida. E esta felicidade quem a sente, tanto quanto sabemos, é José António. E é perigoso sentirmo-nos felizes por nós e pelos outros. Essa felicidade que o atravessa a ele convicto que está da sua mudança não sabemos se é também de Maria de Fátima porque não lho perguntámos ainda nem ela no-lo disse de vontade própria. O marido não lho pergunta com medo da resposta. Prefere tentar adivinhá-la nos gestos dela. Percebeu que ela está mais tempo em casa, atrasa-se menos vezes no trabalho, sai menos com as amigas. E quando diz, determinada e firme, no sábado à tarde vou sair com uma amigas, pode ser? Ele dilacera-se por dentro do corpo e da alma, teme que as amigas o não sejam de facto mas prefere não viver esse lado da vida dela, deixá-lo ao largo da sua própria vida, e responde-lhe terno e atencioso, claro que sim, diverte-te, eu fico com os miúdos, temos muito com que nos distrair. Ela percebe a referência aos filhos. Emudece. Não se demove.
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Os dias correm céleres e não sendo este casal feliz, não é infeliz também. Maria de Fátima estranhou tão profunda mudança de atitude e questionou-o. Ele atirou-lhe com uma justificação verdadeira para além da verdadeira razão que não podia revelar-lhe, que queria aproveitar mais a maravilhosa mulher que tinha, a fantástica família que tinha, que era uma felicidade viver assim, que se sentia feliz e realizado e a eles devia tudo e por isso os compensaria com o desvelo e a dedicação de que fosse capaz. Maria de Fátima não acreditou. Conhecia-o bem demais. conhecia-se bem demais. Sabia de si que era uma causadora de problemas e sabia dele que estava tentando resolver um problema. Por agora, decidiu acreditar.
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Quando entraram na intimidade dos lencóis e ela o puxou para si, José António foi carinhoso e terno, desvendou o seu reportório de carícias e foi suave e delicado no momento em que os seus corpos se fundiram. José António esteve fazendo amor com Maria de Fátima. Ela teria preferido sexo. Impacientou-se, cravou-lhe as unhas nas nádegas e quis que ele a possuíse, que a tomasse com vigor e altivez masculina. Estiveram amando-se desencontrados e sempre que tal acontecia a nuvem negra dos receios de José António ocupava-lhe as ideias e enchia-lhe o peito e Maria de Fátima costumava pensar: "Sábado, vou sair com umas amigas!"

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