Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIII)

Isto é a cozinha. Parece um campo de batalha. Uma enorme caixa de pizza envelhecida, com a gordura seca e as migalhas sobrantes enrijecidas pelo tempo, é o que mais se aproxima de uma toalha. Há canecas de loiça vazias de leite com café ressequido e copos com cascas de fruta dentro. A paisagem está condimentada por diversos recipientes de alumínio de refeições rápidas e nutritivas, mais rápidas do que nutritivas, cozinhadas em três minutos, vazias, semi-vazias e quase cheias, abandonadas à impessoalidade do sabor, ou falta dele, apodrecidas. Há restos de pão que não foi abençoado numa refeição e talheres pegajosos em latas de atum vazias. E há babéis de loiça amontoada em desalinho crescente buscando o céu e esperando a humana mão que não aparece. O frigorífico, se o abríssemos, seria um deserto de ideias. Uns quantos iogurtes com prazo ultrapassado, um pacote de manteiga meio gasto e já sem tampa e um pacote de leite magro aberto e quase cheio. A verdura não conhece para aqui o caminho. À medida que abandonamos a cozinha em direcção ao quarto, a paisagem muda e não muda. Muda porque se alteram os adereços, menos culinários ou comestíveis, e mais de vestir e despir que não andam os humanos outra coisa fazendo a vida toda que não seja vestir-se e despir-se das roupas, das máscaras e dos preconceitos. Não muda porque o caos é o mesmo. Jazem calças pelo chão e pela cama e em cima de uma cadeira ao fundo daquela. E há meias de calçar os pés inteiros espalhadas por todo o lado. E camisas e gravatas e cuecas e camisolas interiores e tudo em desalinho e desacerto buscando uma ordem longe dela. E o rasto da comida chegou até aqui. Um pacote de bolachas aberto e já só com restos visitado por um outro de leite com chocolate onde já não está o leite nem o chocolate estão enfeitando a mesa-de-cabeceira. Na casa-de-banho a tampa da sanita está levantada e um fio de pasta dos dentes escorre pelo lavatório e há um copinho para a escova mas esta saíu em romaria e perdeu-se, algures, no lava-loiça da cozinha entre uma caneca de leite quente e um telemóvel que tocava. E há nesta casa que não é um lar uma sala que é sala e escritório também. A televisão emite uma luz trémula mas não tem som. Há papéis por cima da mesa rectangular, pequena e frágil, comprada às postas numa grande superfície e montada pelo próprio com a ajuda de um manual de instruções impresso em papel reciclável cujo conteudo é atravessado por uma confrangedora infantilidade e pela imbecilidade descontextualizada de serem instruções de lá, onde se pariu a mesa, para aqui, onde se há-de montar e comer sobre ela e deixá-la morrer num contentor verde com as iniciais do município. Sobre esta mesa divagam impressos de ordem diversa, contas por pagar, panfletos promocionais que anunciam costoletas do lombo na frente e televisores no verso, extractos de conta sendo que o que está por cima dos demais tem na primeira linha um número mais volumoso que vai depois decrescendo até se converter noutro número volumoso mas desta vez com um sinal de menos a antecipá-lo. E há, para mal do habitante deste espaço, uma nota indemnizatória de despedimento com um valor semelhante ao que encima o extracto de conta. Feneceu nessa mesa, há muito, um computador portátil, de tampa fechada enfeitada com rodelas de suor dos copos que aí estiveram poisados. O ar é pesado e espesso e atravessado pela nicotina expirada de cigarros nacionais de que encontramos um pacote amarrotado no chão, aos pés da mesa, por vazio estar e ter perdido a sua desutilidade. E há jornais diversos abertos nas páginas dos classificados com rodelas azuis de esferográficas publicitárias e mal escreventes circundando alguns anúncios. E por toda a casa está espalhada pelo chão angústia e pendurado ao abandono em costas de cadeiras que fazem conjunto com a mesa anda o desespero. Vagueia pelo chão a desorientação, um estar perdido sabendo-se onde se está. E mais do que tudo e em todos os recantos desta casa mal cuidada há solidão. A solidão profunda de um homem que há meia dúzia de meses era pai e marido e trabalhador e estava vivo para a vida e agora a morre todos os dias lentamente, desempregado, fugindo aos fins-de-semana com os miúdos por não saber dar-lhes o que queria e gostava, por não saber cuidar deles, e descasado com a única mulher com que saberia estar casado.
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José António é hoje menos do que a sombra do homem que foi. A vida é demasiado grande para si. Não tem braços suficientes para abraçá-la sozinho nem horizonte na mente para que os olhos vejam para além do que olham. À medida que o quotidiano foi fazendo exigências, este homem foi-se perdendo nelas, na sua incapacidade para fazer-lhes frente. José António precisa de dar e não tem a quem, precisa de receber e não tem de quem. Precisa ser guia e não tem quem guiar, precisa ser guiado e não tem quem o guie. Este homem anda amputado de corpo e alma porque não veio ao mundo para vivê-lo sozinho. Lembra-se bem da sua determinação de tomar o rumo da vida quando inspirou o sol tépido à saída do tribunal na manhã em que se divorciou. Mas a solidão matou-lhe todas as intenções. Está abandonado. José António parecia alimentar a vida que tinha e afinal não só a alimentava como se alimentava dela. E está vivendo a decandência profissional, financeira, emocional, familiar e está morrendo a vida e continua procurando em si as forças e as soluções. Precisava ser um exemplo para os filhos e encontra-se evitando-os porque nem para si é exemplo, porque é o primeiro a não acreditar em si.
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Tão precária é a condição das gentes e tantas forças as gentes parecem ter. E parece até que quanto mais se sofreu, quanto mais frágil e fragilizado e vulnerável se esteve mais forte e resistente se vem a ser. José António está sentado numa cadeira ao lado da mesa de que falámos ainda agora, tem um cotovelo sobre ela. Está nú. Tem frio. Em cima da mesa, ao seu lado, junto ao braço que aí poisou, descansa o que resta de uma cerveja que foi fresca há uns dias. Pende o pescoço para a frente. Desacredita e desespera e olha o chão. E no chão está um talão de lavandaria. Tem qualquer coisa agrafada. Estende a mão sem curiosidade que não fosse a de saber só por saber, só porque a vida o tinha trazido até ali e quer ver o que está agrafado ao talão de quatro euros e oitenta e sete cêntimos. São dois papelinhos. Um oferece a limpeza de uma peça em gastos superiores a dez euros e o outro, mais colorido e em papel de qualidade um pouco melhor, tem em letras gordas a frase Venha trabalhar connosco!

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