Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXII)


A manhã vai a meio e, contudo, muitas vidas se decidiram, já. O dia está limpo e o sol inunda os espaços e as pessoas semeando a fé de que um tempo menos frio virá. Nem sempre as personagens desta estória têm seus humores de acordo com o tempo que vai lá fora. É o que acontece neste momento em que a luz tépida promete vida e renascer de vontades e empreitadas e cometimentos e, no entanto, para José António e Maria de Fátima é o fim.
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O tribunal tem uma fachada neoclássica e uma imponente colunata antecipa um amplo espaço antes das escadarias que trazem as pessoas à casa da justiça ou as devolvem à vida. José António e Maria de Fátima estão voltando à vida. Têm o edifício imponente nas suas costas e pela frente o sol brilhando nas suas faces. O que por lá se disse por vontade própria ou obrigação do momento está dito e teve os efeitos que deveria ter. Foi simples. Quase não teria sido preciso lá ir não fossem as naturais divisões materiais do que em espírito estava unido e em espírito se desuniu provocando depois a réplica divisória nas coisas mais pequenas. Um outro assunto obrigou à visita à casa da justiça. É que este casamento e o divórcio que nele nasceu obrigaram a dividir o que não é divisível. Os filhos. José António, numa conversa de ambos sobre este incontornável problema, ainda esboçou um gesto, uma vontade, uma intenção de ficar com eles. Maria de Fátima não reagiu mal. Notou com agrado que perdera o marido mas os filhos não perderiam o pai, contudo, não permitiu que a vontade caminhasse para esperança. Com carinho lhe foi dizendo que o problema dele não seria tomar conta dos filhos mas tomar conta de si próprio. Ofereceu-se mesmo para lhe tratar das roupas durante os primeiros tempos. Nem lhe perguntou se ficaria por perto. Sabia que sim. José António era daquelas pessoas que não voam para longe. Assimilam hábitos seguros e com segurança e diligência os vão repetindo e é isso a sua vida. Sem sobressaltos. Não se espera destas almas o rasgo de imaginação, o risco e a aventura mas pode esperar-se a firmeza, a constância e a fidelidade no carácter. Percebeu nessa altura que no departamento da culinária estava autónomo como estaria nas limpezas mas não fazia a mínima ideia de como tratar da roupa. A de cama, a de vestir, a de higiene. Claro que se desembaraçaria mas envolver crianças pequenas nas suas experiências fê-lo pensar. Por outro lado, Maria de Fátima era quem conversava com a professora do Marco e não saberia gerir essa parte da vida. Acomodou-se. Tivesse ela os defeitos que tivesse, nunca descuidara os filhos. Aceitou. Debateram,depois, a regulação parental, quantos jantares por semana, quantos fins-de-semana por mês, quantos dias nas férias, com quem se passa o Natal, o Fim de Ano, a Páscoa, o aniversário do Pai, o da Mãe, o das crianças, a que horas buscá-los e a que horas entregá-los, a pensão de alimentação e as outras despesas de que não queriam fugir mas que não desejavam suportar sozinhos. Quando terminaram esta fase da discussão com o natural envolvimento dos advogados, José António percebeu que se estava separando mas não divorciando. Em havendo filhos, não há divórcio. Há vidas que seguem caminhos separados mas os seus sangues correrão juntos, feitos um naquelas crianças e os seus quotidianos estarão unidos para sempre a menos que algum abdique que é coisa que nenhum destes dois vai fazer.
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Vêm saindo lado a lado e não se olham. Ela olha em frente, ele cola os olhos no chão. Estão agora de frente para o sol olhando o mundo com olhos novos. Trazem na face lições diferentes do passado e diferentes projectos e perspectivas para o futuro. São engraçados, os humanos, por vezes parecem estar vivendo as mesmas experiências e não estão porque as experiências são muito mais aquilo que se passa dentro de cada um do que os acontecimentos cá fora. E dentro de cada um tudo tem o impacto e a amplitude e a perspectiva que cada um lhe dá. Andamos caminhando lado a lado como vêm estes dois saindo do tribunal mas caminhamos caminhos diferentes. Maria de Fátima não vem sorrindo, vem meio-sorrindo que é o meio-sorriso o esgar que fica entre o rosto sério que vem de tratar sérias coisas e o rosto sorridente à vida que se espraia à sua frente. A sua face vem aberta, límpida e o olhar reflecte o brilho do sol. Maria de Fátima lamenta a perda de um homem e uma vida mas sabe que conquistou a liberdade de viver a sua natureza em verdade. Em verdade será! José António traz o mundo às costas. A sua face transmite pesar e o seu corpo dobrado também. Os olhos não reflectem o sol mas somente as nuvens que agora se não vêem mas o habitam por dentro. Este homem tinha uma vida, perdeu-a e ainda não sabe como viver outra. Sobretudo não sabe como viver entre duas vidas. Ergueu os ombros e levantou o olhar e decidiu que em seis meses seria outro homem, vivendo autónomo e livre. Tudo o que deixara de viver por amor a outrém, viverá por amor a si. Não sabe onde, mas quer encontrar as forças, o engenho, quer reagir, sabe que existe a pessoa que o merece e procurá-la-á porque não sabe, não pode e não quer viver sozinho. dedicar-se-á aos filhos, ao trabalho. Terá um hobbie. Ocupará o seu tempo, cuidará da casa e sobretudo, viverá os seus princípios igual a si próprio e sem a nuvem da mentira pairando por perto.

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