Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXI)


A imprevisibilidade é um traço humano que, por ser o que é, temos intensa dificuldade em perceber. Porque está uma mulher vivendo uma vida vinte anos inteiros dela e depois decide parar de súbito sem aviso? Porque está um homem fazendo o seu trabalho décadas a fio, partilhando sucessos e insucessos com os seus companheiros e, de repente, apanha um avião e vai para o outro lado do mundo começar tudo de novo? Porque está um casal fazendo amor e ela pára e diz não posso continuar e sai correndo para não mais voltar? Porque está um homem sendo honesto uma vida inteira construindo a sua imagem e o seu universo de relações com base nessa atitude e depois desaparece porque foi preso por fraude? Porque está uma mulher amando o seu marido e os seus amantes e vivendo na mentira a sua verdade e, uma noite, chegada a casa e entrada na cama, se farta, despe as máscaras todas e assume-se como é e enfrenta o que vier? Talvez não haja resposta, ou talvez a resposta seja tão simples e óbvia que se torne difícil vislumbrá-la. Sendo a vida tão maravilhosamente diversa e oferecendo tantas oportunidades e caminhos, é natural que indo um homem por um caminho há muito tempo, caminhando em calçado confortável sobre piso bem tratado, com o sol brilhando e a brisa correndo e havendo fontes pela beira da estrada, olhe para o lado e veja um carreiro pedregoso, enfeitado pela sinuosidade vertiginosa das curvas apertadas e precipitadas no vazio e se sinta atraído. Não que vá para melhor. Sabe-o porque está vendo onde vai e vendo está o que o espera. Mas vai para diferente e isso basta-lhe. É abismo mas é atracção. É pior, mas é muito melhor do que passar pela vida e sentir que foi desperdiçada. Este narrador que está com os leitores partilhando o curso desta estória habita num autor que conheceu um homem sábio. Tinha a quarta classe. E um dia disse que mais valia arrependermo-nos dos erros cometidos do que olharmos para trás e arrependermo-nos de não ter vivido. Os erros reparam-se. A vida não se recupera. Que saudades daquela sabedoria tranquila!

Por razões que em breve perceberemos, Maria de Fátima está a mudar o curso da sua existência. Que é o que fazem constantemente todos os humanos. Trocam os caminhos que percorrem uns pelos outros, uns com os outros e vão dando, recebendo, trocando a existência, tentando ficar. Mas não ficam. Partem todos.

José António está atónito. Percebeu em três palavras que todos os seus esforços tinham sido em vão. Percebeu que a sua mulher não era sua, pensou que era de outro. Enganou-se. E desejou, naquele momento desejou com todas as suas forças que atrás daquela revelação cruel houvesse dignidade. Não o esperava mas desejou-o intensamente. Podia tê-lo esperado. O que Maria de Fátima vai dizer-lhe magoá-lo-á como nunca fora magoado antes. Destruirá a esperança ténue que lhe habitava os dias de que o seu universo podia recompor-se. Mas será um discurso frontal, sincero e digno. A verdade, tantas vezes arredada dos seus gestos e das suas palavras, estará presente e será o fio condutor do que tem para dizer-lhe. Esta é uma verdade dura e talvez por isso não possa mais ficar contida nem escondida porque a mentira anda amordaçando uma verdade que é a própria natureza de Maria de Fátima. E a natureza das gentes mascara-se, esconde-se, oculta-se, mas não se amordaça que um dia chega sempre em que irrompe de onde estava e se apresenta ao mundo para ser o que é.
- Mas... minha querida...
- Não me chames isso. Não to mereço e sabe-lo. Minto-te amiúde e sabe-lo também. E não me revelas que sabes. E ganhas vantagem com uma mentira também. Não é mais nem menos grave. É outra mentira. Não me perguntes como sei que sabes porque não tenho resposta para essa pergunta. Não é nada que tenha visto ou ouvido. Simplesmente sei. Sei porque ages de modo diferente. Sei porque ninguém é assim tão bom e tão magnânimo que não esteja sacrificando algo, calando e amordaçando algo. Não tenho provas, não sei como sabes mas sei que sabes e sei que preferia que batesses com as portas, que ralhasses, que me acusasses e reclamasses os teus direitos de marido... Não fazê-lo é como se abdicasses de mim. É como se os teus gestos, ainda que magnânimos, fossem só em nome de ti e dos teus princípios e não me levassem em conta. Não podes anular-me nem viver por mim o que tem de ser vivido por nós. E esse é o teu erro e como temos errado os dois sei que meu erro tem sido deixar-te errar na ilusão de que esta relação pode resultar, de que não está já morta quando morta está há muito.
- Desde quando?!
- Desde sempre. Porque é desde sempre que me não possuis. Eu quero que me tomes nos teus braços e me comandes. Eu quero que me empurres para cama onde cais sobre mim e me tomas quer queira quer não porque no meu íntimo quero-te sempre. Não me entendas mal. Eu amo que me ames. Mas há um excesso no teu respeito, no teu cuidado e no teu desvelo que me faz sentir amada mas não desejada. E uma mulher tem de ser desejada. Eu não sou a tua boneca, eu sou uma mulher inteira e se me queres tens de saber ter-me por inteira!

Ele estava ouvindo uma mulher que não conhecia e estava já pensando que nunca quisera conhecer, que nunca lhe dera uma oportunidade de revelar-se, que presumira e induzira os seus comportamentos, que a aprisionara em vez de a libertar e por isso acaba de perdê-la. E como gostaria de a ter possuído. Como gostaria de ter tido a coragem das loucuras e das regras quebradas. Mas não teve e paga agora o preço dessa cobardia.

Maria de Fátima tinha sido educada mas impetuosa, firme e seca. Não ignorou o olhar amortecido de José António. A forma como se curvou perante as suas palavras e as aceitou carregando, já, o seu peso nas suas costas dobradas. Estava para alongar-se no ímpeto mas percebeu que ele não resistiria muito mais. Viu o seu marido indefeso, culpado na inocência e inverteu as suas intenções. Está agora passando-lhe uma mão fechada em concha pelo rosto como quem acaricia uma criança perdida e oferece-lhe palavras claras e meigas.

- Meu querido José António, como gosto de ti. Como te amo. E como não posso viver contigo. Não és tu Zé Tó. Sou eu, é a minha natureza. Eu vivo a vertigem da carne e da posse. Eu amo no sexo e no corpo. E sinto nesse prazer as emoções todas e aí me realizo mulher e me sinto inteira. Eu não tenho outro homem porque sendo de todos a nenhum pertenço. Meu querido, a minha natureza faz-te sofrer porque me não realizas nem completas e porque sofres as minhas faltas, as minhas ausências e as minhas mentiras. Meu amor, tu tens virtudes extraordinárias que eu não compreendo, que lamentavelmente não valorizo nem sei aproveitar. Tu mereces encontrar quem te valorize, quem te estime, quem te queira... Tu mereces viver em paz e em verdade a tua natureza e eu quero viver em verdade a minha. Tu precisas encontrar a coragem de cortar-me de ti. E se a não encontrares, eu divorcio-te de mim!

José António franziu o sobrolho estranhando a frase como se o seu sentido lhe estivesse escapando ao entendimento mas ela nem o deixou respirar e atalhou:

- Sim, meu amor, à falta de coragem tua, eu divorcio-te de mim! Era o que tu já devias ter feito porque não há sacrifício que valha a tua vida. Tu és um homem bom, o melhor dos maridos e o mais dedicado dos pais. Mas não és...
- Homem para ti!
- Se o quiseres dizer assim… talvez não seja eu mulher para ti. Te não mereça. Só sei que há entre nós um oceano de vidas e vontades e desejos e tendências e visões e loucuras. E nenhum de nós tem como cruzar esse mar de distâncias.

Pela segunda vez na mesma noite José António está espantado. Não consegue hostilizá-la. Não consegue detestá-la. Queria, mas não consegue. Ainda que lhe custe, José António reconhece a coragem e a força da mulher que tem ao pé de si e sabendo, já, que não a quer para sua mulher não pode deixar de sentir-se confortável por ser Maria de Fátima a mãe de seus filhos. E deseja que uma tal verticalidade seja hereditária.

Maria de Fátima olha-o e tem no olhar a ternura e tem no peito a dor de ter perdido um homem de que sentirá falta nas noites sozinhas e frias, nos dias perdidos, nas horas difíceis. Mas não continuará a mentir-se a vida. E agora está fazendo nova festa na sua face. José António coloca-lhe uma mão na cintura e encosta a sua cabeça no peito dela. Abraçam-se ficam assim entregues à sua perdição, à sua solidão, tentado encurtar as distâncias. E quase sem querer, ele olha-a e ia beijá-la na face quando ela se volta para ele e os seus lábios não se tocam mas passam perto uns dos outros, o suficiente para que pressentissem o calor. Agora tocam-se voluntariamente e estão beijando-se devagarinho. E vão fazendo tudo de devagarinho, colocando suavidade em cada gesto de amar. As roupas tombam no chão e ele ama-a e ela deixa-se amar. Quando terminaram os gestos da entrega ele anichou-se nos braços dela e nos cabelos dela e no peito dela e respirou-lhe o corpo sorvendo o ar. Ela acariciou-lhe a nuca e brincou com os cabelos finos dele. Estavam nesta letargia de amar quando ele se levantou nú, foi ao roupeiro, tirou um pijama e uma almofada e abandonou o quarto.

Maria de Fátima e José António tinham-se amado de despedir. Tinham partido um do outro sabendo que não podiam ser um do outro e sabendo também que seriam sempre um do outro. Quando a manhã acordou, saiu para a rua um homem resignado e decidido a tratar da sua vida. A tomar-lhe as rédeas e o comando. Só não sabia como.

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