Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIV)

- Porque eu amo outra mulher!

Repetira firme e sincero no dia em que se separara da outra vida e da sua mulher para ganhar o direito a ser plenamente feliz. Sabia, com a ansiedade de uma criança que abre o embrulho para ver o brinquedo, que muito havia ainda a fazer e a viver até poder usufruir da felicidade que está construindo mas tinha esperado o tempo necessário para ganhar esse direito.
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Tal como a sua mulher prometera, o processo não tinha sido nada fácil. Sempre dentro dos limites exigíveis da educação e até da cooperação mas lutado e suado cada cêntimo, cada dia com os filhos, cada obrigação e cada direito. Não o moviam as questões financeiras mas a sua mulher, ferida na dignidade e na desilusão de não poder lutar por ele nem pela sua vida, tornara-se exigente e até cruel na forma como disputaram o divórcio.
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Por tudo isso, o processo fora longo, demorado e sofrido. Quase um ano passara desde o dia em que decidira cortar com a outa vida e anunciar tal decisão de peito aberto, franco e corajoso à mulher com que tinha vivido uma quase vida. Tudo para ser livre e viver pleno e inteiro de si. O dia dessa libertação chegou.
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Sai do tribunal, passa pela colunata, atravessa o átrio exterior e assoma à escadaria imensa onde já vimos assomar outras personagens desta estória num dia de sol tépido. Os dias frios deram lugar aos amenos e estes aos quentes e estes de novo aos frios e hoje, sob uma chuva miúda e gelada, este homem que é amante das palavras pelas palavras com as palavras está livre para ser amante pleno de corpo e alma entregues àquela que o espera. Talvez por isso, talvez por ter-se sacrificado ao silêncio até ao momento em pudesse entregar-se a ela e recebê-la sem culpas nem desculpas nos seus braços, nunca se havia lembrado dela desta forma viva e profunda como a recorda agora, aqui, ao cimo da escadaria do tribunal que se prepara para descer e mergulhar no anonimato da vida.
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À medida que vence a escadaria ajudado por todos os santos, sobe o ritmo no seu peito marcado pelo entusiasmo. Já sabe o que vai fazer. Vai entregar-se à mulher que verdadeiramente ama e com ela construir uma vida. A vida. Comove-se e uma lágrima surpreende-lhe a caminhada. Pode bem confundir-se com um pingo de chuva que tenha fintado o chapéu negro e largo, de varetas abertas e ponta metálica espetada para o céu. Não sabe como vai fazer e diverte-se escolhendo a melhor forma, a que lhe der mais prazer, a que a surpreender mais. Terá de ser mágica. Lembrou-se de repetir o jantar interrompido. O mesmo local, os mesmos adereços e um final diferente. Desistiu da ideia por lhe encontrar um vago sabor aziago, um vago pressentimento a desgraça. Pensou telefonar-lhe e contar-lhe tudo e surupreendeu-se sorrindo de si mesmo e da ideia de comunicar a grande viragem, a grande mudança de rumo, por telefone. Liga uma pessoa o aparelho e depois do Estou sim, quem fala? Sou eu. Ah, olá, como vais? Bem e tu? despejar através do metálico do aparelho com eventuais faltas de rede, quebras de bateria e outros inconvenientes que a tecnologia encontra para nos desorientar, as palavras mais importantes da vida de um homem, vem ser minha, já posso ser teu. Vem amar-me às claras, de face erguida perante o mundo sem contas a dar, sem nada a recear, pareceu-lhe pouco apropriado. A importância do momento e do que se lhe seguirá justificavam que fosse dito pelas palavras ao alcance do olhar porque, no dizer das gentes, o olhar não mente. Além disso haveria o tacto, dedos entrelaçados em mãos ávidas de amar. E haveria os perfumes, os jeitos e os trejeitos que o corpo encontra para enfeitar e explicar o que vai meio-dito nas palavras. Nada disso poderia ser feito pelo telefone. Telefonar-lhe-ia, sim, mas para convidá-la para jantar. Descartada a repetição da noite de amor interrompido por lhe parecer a ambiência romântica demasiado pesada e festiva para um jantar que marcava um tempo de silêncio e distância, decidiu-se por algo mais simples, um pouco austero, até. Um espaço e uma refeição que marcassem a tristeza da distância e da ausência que agora terminavam. Um espaço e uma refeição com a sobriedade de quem vem de estar só. E depois, então, revelar-lhe-ia o porquê do seu silêncio, as mudanças que fizera, a libertação da outra vida, a disponibilidade para estarem juntos e unidos num só percurso. O percurso de realizarem o seu amor nos pensamentos, nas palavras e nos actos. Já fizera, mesmo, projectos que lhe apresentaria para se entreterem conversando-os, decidindo-os, vivendo-os. Onde viverem, como viverem, que opções para a casa, para os rituais, para a partilha... seria, para o final da noite, a festa da entrega e da comunhão. Desta vez, por curioso que pareça ao leitor, este homem que aqui vemos a caminho de ser feliz não pensou em sexo. Não pensou na carne tão ocupado estava com as coisas do espírito.
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À medida que o recorte imponente do tribunal desaparecia atrás de si e do entusiasmo que levava no peito, foi ficando mais seguro, com o rosto mais aberto e levava consigo, já, a felicidade que queria partilhar com ela. Foi automático o gesto de pegar no telemóvel e digitar o número a que resistira tantas vezes. Agora, contudo, não havia dúvidas que estas cederam o espaço à firmeza de um amor limpo. Alguns toques insuportáveis de chamar e depois, como por magia, a explosão da voz doce dela, do timbre meigo, e um festival de sentimentos dançou no seu peito, bailou no seu olhar e fê-lo acreditar que o mundo era um local bom para se estar. O melhor de todos.
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- Estou sim?
- Boa tarde meu amor!

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