Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVI)

É interessante como o mundo à nossa volta nunca é o que é mas somente como o vemos. Todas as vivências, todas as manhãs, todas as tardes e as noites todas, todas as paisagens, sejam rurais ou urbanas sejam, todas as gentes que passam e ficam, todos os edifícios, todas as árvores, o sol todo e toda a chuva, as ruas todas, os caminhos todos, os veículos e os animais todos não são, nunca, o que são. São sempre como os vemos. E vemo-los sempre como estamos vivendo, filtrados pelo olhar que temos nesse dia, nessa hora, nesse momento exacto.
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Este homem que aqui vemos está cego. Não vê. Olha, mas não vê. Tem um telemóvel na mão. Os braços estão caídos. Ficou olhando o mesmo ponto inexacto que estava fitando enquanto falava ao telefone e não mais tirou de lá os olhos. Não que não queira. Só não consegue. E ficou, assim, inerte, olhando o vazio, mudo e quieto no meio da cidade que passa por si, que rodopia à sua volta. Ficou entre as vozes e os ruídos e as buzinas e as sirenes das ambulâncias que passam como se lá estivesse só o corpo vazio de si que o resto não sabemos nós nem o próprio onde pára.
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Há pessoas estudadas, com muitos anos de livros complexos repletos de gravuras legendadas que chamariam a este estado de choque. Não lhe chamaremos nós nada que não temos competência para tanto mas aspectos há em que somos os únicos habilitados a prestar informação qualificada. Sabemos, por exemplo, que estranhou ele os traseuntes olhando-o como se tivesse algo de errado. E tinha. E talvez por isso iniciou-se em si o despertar. Tão célere quanto doloroso. Vai despertando e os sons vão entrando em si e começa a reposicionar-se no universo. Onde está, como está, porque está. E, em simultâneo, é assaltado pela consciencialização do que acaba de acontecer-lhe. Cai em si. Reconhece, num vortex de sofrimento e incredulidade, a loucura que cometeu, a porta da desgraça que abriu. Como fora igénuo e, pior, muito pior, incauto. Interroga-se porque não a interrompeu, Que dizes tu? Estou livre para ser teu. Quero que sejas minha. Abandonei uma mulher que me ama e amo, um par de filhos, uma vida... tudo por ti e agora dizes-me que tens um companheiro tranquilo? Onde estão as tuas promessas de amor? Mas não disse nada e agora percebe as razões. Foi uma inacção que se apoderou de si porque fora apanhado de surpresa, porque não se espera da pessoa a quem se entrega a vida que nos diga que não a quer mais. É como se não tivesse acreditado no que ouvia. E foi um respeito e uma dignidade. Não se discute nem regateia a liberdade de outrém fazer as suas opções e escolher os seus caminhos quando vimos de fazer o mesmo. Não se determina para os outros a liberdade que se reclama para nós: a de amar.
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Em meio desde acordar para a dor, em meio deste sofrimento profundo que ainda não percebe bem, só sente, cujas consequências ainda não consegue perceber, perguntou-se quem seria aquele José António tranquilo e dedicado que a fazia feliz e o matava a si por dentro, lhe destruía a vida sem saber... E como quase acontece sempre que perguntamos algo, este homem já a tinha a resposta consigo. E a resposta que encontrava em si é que não seria importante quem era o dedicado e gentil namorado dela mas quem ele próprio não conseguira ser ou deixara de ser. Não conseguira ser um amante dedicado e exclusivo, não conseguira entregar a sua existência à mulher que lha pedira e sonhara, erradamente, que o poderia fazer. Não conseguira ser um José António gentil e presente e abdicara de ser a única coisa que conseguira ser até ao momento: um marido e um pai. Deixara de ser o que aprendera a ser ao longo de uma vida. E em meio deste ser e não ser perdera as duas vidas. Uma, porque não era sua. A outra porque, sendo sua, a rejeitara.
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A trágica ironia da existência oferecera-lhe duas vidas. Cegara-o. E fizera-o perder ambas. E sentia-se agora engolido por uma solidão súbita, uma sensação de estar já pagando o preço da sua imprudência e da sua ambição. E, num momento breve de clarividência, viu-se protagonista da tragédia humana. Uma certeza, ainda envolta na neblina incerta do choque e do pensamento, parecia crescer em si. Havia entrado neste palco pelo seu próprio pé e pela sua própria vontade e teriam de ser a sua própria vontade e o seu próprio pé a tirá-lo dele.

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