Estórias ao Acaso: Noite Fria (EPÍLOGO)


Não era possível passar despercebida, mesmo que quisesse. Fosse um ambiente restrito, fosse um espaço amplo, fosse qual fosse a sua atitude. Margarida tinha um olhar desafiador, um sorriso inquietante, quase como se estivesse sempre a perguntar algo ou a espicaçar um comentário. Era evidente para quem a observava, e para si mesma, que muitas das vezes fazia de propósito. Gostava mesmo de não passar despercebida. Mas não era aí que residia o milagre. Esse acontecia quando ela se distraía de si, quando, sem querer, tirava a máscara e ficava natural. Podia ser numa esplanada olhando quem passa enquanto bebia o sumo de laranja natural pela palhinha. Podia ser na rua olhando a montra de uma loja de roupas, podia ser mordiscando a ponta de um lápis, sentada na beira de uma secretária da faculdade que tantas vezes preferia às cadeiras ou podia ser só numa roda de amigos quando a conversa ia longa e os teatros todos já tinham sido representados e os assuntos mais interessantes surgiam e pediam outras franquezas. Era para lá da barreira da representação que Margarida ficava mais inquietantemente bela. Irresistível. E sabia que era irresistível. Só não sabia que o era mais ainda nestes momentos porque lhe passavam despercebidos. Era uma jovem mulher plena de espírito, cheia de coragem e de uma fina e requintada inteligência. Contudo, não era pelo olhar, nem pelo sorriso, nem pela inteligência, nem pelo espírito que os homens e as mulheres mais reparavam em si. Era o cabelo. Uma farta e profusamente encaracolada cabeleira fulva dava-lhe um ar rebelde e livre. E era de facto uma coisa e outra. Tinha a face serpenteada de sardas pequeninas muito juntinhas num tom suave de caramelo. O nariz bem empertigado quer porque assim tinha nascido, quer porque o seu génio provocador o empurrava para o mundo afirmando a sua presença. Não era alta embora baixa se não possa dizer que fosse e tinha um corpo magro de ver a ossatura nas costas e nas canelas. Comia com avidez e vontade assim como quem vai devorar o mundo mas nunca engordava. E adorava comer com as mãos sobretudo se estivesse numa situação formal em que não pudesse fazê-lo. Dizia que só comendo com as mãos poderíamos efectivamente saborear a comida porque a textura faz parte do sabor. Margarida estava constantemente desafiando os limites. Quais? Todos. Se uma fraqueza quiséssemos encontrar nesta harmonia feminina de fazer estontear os homens e as mulheres seria a voz. Era uma voz aguda, vibrante, não incomodativa mas que desafinava com facilidade sempre que a tentava erguer acima dos decibéis aceitáveis para uma conversação civilizada. Faz Deus estas torturas quando entende, que é dar a uma pessoa a vontade de dizer as coisas todas do mundo ao mundo, largar na face do seu semelhante as verdades nuas e cruas e cruéis, Você está com mau aspecto? Não está? e depois não lhe oferece instrumento condizente com tamanha vontade e proliferação de palavras. Acontece que Margarida era muito menina para em meio de uma conversa dizer como quem cospe E escusa de dizer-me nas costas que eu tenho uma voz esquisita porque sei bem que sou uma cana rachada. E desarmava o pensamento na mente do agressor ainda o dito se não tinha formado por completo. Havia, contudo, um traço que, destoando de toda esta energia, de todo este dinamismo, de todo este desafiar da Humanidade e da vida, lhe conferia ainda mais encanto. Por vezes, por motivos quase-nada, por coisas pequenas que se lhe faziam grandes na alma e no sentir, ficava com a voz mais serena, o olhar mais meigo, o jeito mais menino e indefeso. Um passarito que caíra do ninho, uma criança chorando, um homem indefeso, uma mulher entristecida, uma lua cheia na noite limpa e estrelada, uma canção do Sinatra quando estivesse sozinha em casa. Certa vez, ainda pequenita, sentada no banco de trás do carro que o pai conduzia quando regressavam de uma praia domingueira pediu-lhe que parasse porque queria fazer xi-xi. E correu na direcção de um cachorrito abandonado por que tinham passado. E veio carregada com ele, arfando de cansaço, nada perturbada pelo cheiro, pelas carraças, pelas pulgas e pelas feridas abertas na carne do animal. Coitadinho. Disse com os olhitos marejados. Temos de o ajudar. À parte estas tiradas comportava-se sempre exibindo a sua irreverência e fazia questão de a sustentar na autonomia com que assumia as suas posições e os seus gestos. A primeira vez que saiu de casa foi aos três anos. Deram com ela no jardim, sentada num banco de ripinhas verdes a ver as outras crianças brincar. A segunda vez que saiu de casa, “fugiu” para casa da tia Alice e só voltou três semanas depois. Tinha onze anos, os dentes intervalados por espaços largos e quase tantas borbulhas como sardas. Fez aquilo a que chamou greve de pais. A última vez que saiu de casa foi aos dezoito e nunca mais voltou. Ou melhor, volta quando lhe apetece que é quase todos os dias ou, pelo menos, as vezes todas que quer durante a semana. Seja por causa de um mimo da mãe, um beijo do pai, uma comidinha caseira, um adiantamento da mesada ou um serão a ver televisão e a contrariar as opiniões dos pais. Nunca lá dorme. Vai sempre ficar à sua própria casa. A sua casa é a sua liberdade, o seu universo. E foi uma conquista negociada a troco de ganhar juízo e tirar Direito como o pai quer e a mãe apoia. Na altura aceitou e cumprirá a sua parte do acordo. Já decidiu que fará a vontade aos pais mas nunca exercerá. Tem o fascínio do jornalismo e é por aí que vai seguir e fazer vida. Como, ainda não sabe mas também não está preocupada com isso. Está nos primeiros anos depois dos vinte e vive uma fase de experimentalismo relacional. Leu Henry Miller e Anaïs Nin, deixou-se seduzir pelo traço de Frida Kahlo e tem uma miniatura de “El abrazo amoroso del universo” em cima da secretária abandonada ao tempo e à falta de paciência para o Código e Civil e quejandos. Está fascinada com o fulgor e a crueza da fase sombria de Goya. Sabe de cor algumas das falas de Marlon Brando em “O último tango em Paris” e ouve Blues. Margarida declarou-se praticante consciente e devota daquilo a que chama o desporto mais concorrido do universo: a sedução. Não é o sexo que lhe interessa. Nem tão pouco uma relação estável. Pelo menos para já. É o desafio. Margarida estuda-os, lê-lhes os sinais nas roupas que trazem vestidas, nos carros que conduzem, na firmeza do aperto de mão, na segurança da voz, no brilho do olhar. Anda conhecendo e dizendo que é para escolher o seu homem. Mas não é, de facto. Esta jovem espirituosa e inteligente tem os homens todos a seus pés. Em poucos segundos. E o que verdadeiramente procura é um homem que esteja à sua altura. Que a não siga mas a faça segui-lo. Que lhe diga Não. Tudo o resto virá depois mas faz-lhe falta esse carácter. Gosta do jogo de olhares, do calculismo e do atrevimento das primeiras palavras, da ousadia das primeiras insinuações. Sonda-os, ronda-os, cerca-os e quando vêm a jogo reage de acordo com as atitudes deles. Massacra os que são excessivamente confiantes, os presunçosos. Trata com ironia e sarcasmo impiedoso os menos inteligentes. E abandona com indiferença os fracos. O seu espírito selectivo já só tolera um homem inteligente, delicado e, claro, corajoso. É assim como se a mãe Natureza lhe tivesse implantado um código de critérios de selecção. Quando um homem passa no seu crivo, Margarida faz a festa do espírito e do corpo.

Margarida está no terceiro ano e viemos encontrá-la numa aula de Direito Sucessório. O anfiteatro tem um ar sólido e antigo mas perfeitamente conservado. As filas ovaladas de cadeiras, com uma mesa contínua a seguir a oval das cadeiras, sucedem-se. As mais longas lá em cima. As mais curtas cá em baixo uma vez que aí se aperta o semi-círculo. Esta aula não é convencional. Há uma projecção na parede por trás do professor que não está lá uma vez que se encontra junto a um grupo de alunos. Pelo espaço, claramente desconfortável para este tipo de trabalho, dispersam-se outros grupos de trabalho em que os alunos se viram para trás, se esticam para a frente, se colocam de pé ou sentados na longa mesa semicircular. O labor é intenso e discutido e, a espaços, sobressai a voz de Margarida. Mas, vamos ao que interessa que não foi por causa do trabalho de alunos e professores que aqui viemos. Margarida tem uma saia curta e justa ao corpo, preta. Uma camisa branca de que só vemos a gola por fora de uma camisola de gola alta, larga e descaída. O cabelo tem a exuberância da juventude e do ruivo com que nasceu. Está sentada na mesa traçando uma perna por cima da outra assentado a ponta do pé na cadeira onde devia estar sentada. Está virada para trás e discute com vigor na fala, energia no olhar e provocação na postura. O professor olha-a de soslaio e remete-se ao pudor que a ética lhe exige mas não resiste a voltar a espreitá-la. Os colegas encontram sempre forma de passar junto ao espaço onde está o seu grupo de trabalho e alguns deixam-se de pudores e ficam a olhá-la como uma dádiva dos deuses ou da natureza. Acontece que não só nos fartamos de olhar como, por vezes, nos podemos fartar de ser olhados. Margarida fartou-se. Deu uma qualquer desculpa e saiu. Foi para a rua inspirar o ar frio, olhar as montras e dar passadas largas e desajeitadas mas com graça. Gosta de perder-se na multidão da cidade para se encontrar consigo despida das máscaras desnecessárias por entre o anonimato da urbe.

Numa calçada que sobe para si e desce para os que consigo se cruzam, observa ao longe um homem junto a uma montra de roupas e resolveu considerá-lo interessante. Gabardina creme, calça de bombazina azul-escura, camisa branca e gravata a condizer. Gostou do aprumo. Aquele era da classe dos metódicos e organizados. Esses oferecem vantagens. Foi, no entanto, o olhar dele que a cativou. Era um olhar que gritava receios, transparecia lealdade e nem por isso deixava de ser melancólico. Apostou consigo mesma, que é o que fazemos quando conversamos o mundo connosco, que aquela melancolia não era tristeza. Era só insegurança. Era só aquém. Aquele homem perfilado de frente para a montra andara reprimido uma vida inteira e, por isso, tinha uma outra vida inteira para libertar. Andara sempre aquém dos seus sonhos. Talvez porque nem os tivesse sonhado ainda que são esses os sonhos mais perigosos e os mais poderosos. Os sonhos que faltam sonhar. E havia doçura naquele olhar. Uma doçura suave e meiga e abandonada como certo cachorrinho que apanhou na beira da estrada num dia da sua feliz infância. Não quis mais entregar-se ao desenho do carácter do estranho que ia ficando mais próximo à medida que ela avançava na calçada. Decidiu abordá-lo. Estava convicta de que confirmaria o retrato que acabara de traçar. Este era um homem facilmente seduzível porque andava ansiando vida e vida era ela. Inteira. Este era um homem que a desiludiria ao primeiro contacto pois não era capaz de um Não fosse por cobardia ou ânsia de vida. E Margarida pensou testá-lo para abandoná-lo rápido.
- Boa tarde. Disse ela meneando a cabeça, atirando-lhe o perfume e o olhar atrevido.
- Vinha subindo a calçada e apostando comigo mesma que você seria um homem interessante. Decidi convidá-lo para tomarmos um cafezinho… Não me tome por atrevida. Ou tome. A verdade é que apenas gosto de conhecer gente interessante… vamos a isso…
- Não.

Foi esta a palavra que a fez escolhê-lo. Demorar-se na vida deste homem. Não interessa muito o que disse Margarida depois no Não rotundo que apanhou. Interessa que tinha ela armas a que ele não podia resistir. E quis. E hesitou. Mas vinha-se descobrindo um homem diferente em si e quis saber, também, até onde iria este seu novo ser. E ela rodeou-lhe as palavras, insinuou-lhe as curvas do corpo fresco, amarrou-o com o sorriso cristalino e confundiu-o com a bruma da cabeleira farta e ruiva. Estão em casa de Margarida e acabaram de fazer amor. Ela queria sexo mas percebeu que acabaram de fazer amor. E viu que acertara em quase tudo. Sobretudo na doçura que lhe saía do olhar perdido e lhe tomava conta dos gestos e das palavras. Quis perder-se na vida dele mas sabia que um homem assim tinha já, por certo, a vida perdida para outros braços e outros lábios. E assim como quem brinca com ele mas, ao mesmo tempo, lhe vai mostrando as fronteiras disse-lhe num tom a meio caminho entre o sério e o brincalhão:
- Você é formidável. Faz sempre amor com essa entrega num primeiro encontro? Tenha cuidado, não se vá apaixonando que nem o nome um do outro sabemos ainda.
- O seu nome é Margarida que é o que está escrito a letras azuis naquele azulejo pequenino em cima da cómoda. Apaixonado estou desde que a vi, a cheirei, lhe toquei os cabelos e a pele. Só falta que saiba o meu nome para que nos possamos apaixonar segundo as suas regras. Se quiser correr esse risco, viver essa vida, pergunte-mo por vontade sua que eu, se esse risco quiser correr, se essa vida quiser viver, lho direi.
- Inusitadamente inteligente. Pois bem, não é a vida uma sucessão de acasos e oportunidades? Pois cá vai. Como se chama o cavalheiro que faz amor com as palavras, com o corpo e com alma num primeiro encontro?
O homem ficou parado, de pé, olhando o chão e pensando que tudo estava sendo demasiado rápido, que demasiado se estava jogando e arriscando às cegas e levianamente e preparou-se para sair sem dizer-lhe o nome. Acontece, porém, que levantou os olhos e viu-lhe a figura recortada pela luz, os cabelos rebeldes, o sorriso maroto, o olhar intenso e desafiador. Viu a vida à sua frente.
- Eu chamo-me José António.
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