Despertar – II
Voltou. Mas não foi já.
Não alteremos a ordem dos acontecimentos que é esse um abuso dos contadores de estórias. Um abuso e uma prepotência. Trazer os leitores perdidos procurando o fio à meada narrativa. Contemo-la onde ia. Quando a mulher se levantou para ir à casa-de-banho. Nessa altura estava o leitor curioso por saber se ela falaria com o homem de fato azul-escuro.
Pegou na sua mala. Universo curioso, o das malas das mulheres. Autênticos ecossistemas de sobrevir a necessidades. Pasto fértil para curiosos olheiros da vida alheia. Não raro, os homens que gozaram com as malas das mulheres e as inutilidades que nelas viajam, terminaram envergonhados servindo-se de improvável instrumento numa improvável situação. Salvos por um objecto habitante da mala com que gozaram. Normalmente, quando menos se espera, a mala de uma mulher resolve um problema. Linhas, agulhas, batons, cremes, corta-unhas, tesourinhas pequeninas, uma pinça, um dedal, um pacotinho com pensos rápidos, uma caixinha de plástico amarelo com dois tampões que vinha numa promoção, dois pensos higiénicos, um frasquinho de verniz para as unhas e outro com acetona, dois pacotinhos de lenços de papel, um para usar, outro para emprestar, as chaves de casa, as outras chaves de casa, uma carteira com cartões de débito, crédito, de identificação, dinheiro e uma foto dos filhos, facturas e talões diversos, um caderninho para apontar e fazer listas, uma caneta, um lápis, ultimamente uma pen drive, as chaves do carro, os óculos de sol, um pacotinho de plástico transparente com quatro bolachas de água e sal, uma caixinha de comprimidos para a gripe e outra de comprimidos para as dores, quaisquer que sejam, uma caixa de chicletes, um lápis de contorno para os lábios, um pincel de rímel, fotografias diversas, o comando do portão, um rebuçado que vinha com uma bica no fim de um almoço rápido, e envelopes amarrotados e amarelecidos com restos de vida que não voltou.
E quando uma mulher pega na sua mala como fez esta que ainda agora disse às amigas que ia à casa-de-banho e já vinha, sente-se segura porque leva consigo o seu próprio universo de soluções. E esta mulher leva a sua mala e leva também a aventura a saltitar-lhe no olhar e a balançar no ritmo certo do passo firme com que cruza a sala.