De Negro Vestida - XXXIX


De Negro Vestida – III
Maria da Graça Martins, Gracinha entre as poucas amigas que lhe foi permitido ter em tardes de chá e biscoitos sortidos saídos de caixas de lata redondas para pires de porcelana, está no hospital e desta vida que lhe coube viver restam-lhe poucos dias. Ela sabe-o. Mas não se assusta. Bem pelo contrário. Sente uma pontinha de esperança e um resquício longínquo de satisfação. A esperança vem-lhe de saber que, seja a morte o que for, para si será sempre uma terceira oportunidade de viver já que as duas que teve antes esvaíram-se no despotismo do pai e na absurda austeridade do marido. A satisfação surge-lhe de saber que o homem que lhe anulou a existência tendo-lhe prometido a liberdade ver-se-á entregue a si próprio. Só a si. Um homem que ela não tem como culpar, de quem não tem como se queixar porquanto exibiu sempre uma correcção extrema, uma educação máxima e um desvelo ímpar na forma como a tratava em público mais ao filho que tiveram. Nem nunca foi violento, chamando violência à agressão física e verbal. Limitou-se a secar-lhe a vida, a cortar-lhe todos os caminhos de contacto com outras pessoas, todas as vias de autonomia e independência. E foi por isso que quando os médicos lhe disseram por palavras complicadas aquilo que Maria da Graça entendeu como uma doença má nos ossos, foi por isso que quando lhe disseram em tom sussurrado de palavras imperceptíveis no seu universo vocabular que duraria pouco e pouco sofreria, que ela sentiu um alívio e uma libertação cujo único senão era deixar para trás um filho, contudo já criado, do mal o menos.
António da Purificação Martins é filho do pós-guerra, da ditadura salazarista, da opressão, do medo, de famílias ribatejanas de agricultores e viveu a sua infância e a sua juventude entre a fome e o medo de que Isto pode piorar a qualquer momento. Habituou-se a poupar os sapatos andando descalço, a roupa andando sempre com a mesma, os fósforos usando os paus queimados nos bicos acesos para acender outros bicos, a graxa usando a escova para três passagens depois de mergulhada na lata da pomada e rapando todos os bocadinhos que ficavam na tampa, a comida comendo o essencial, usando em várias refeições o mesmo cozinhado, partilhando um copo de vinho, um pão, uma sardinha, uma cama. E quando um tio paterno reconheceu no rapaz qualidades extremas para estudar chegando mesmo a considerar um desperdício trazê-lo nos campos e oferecendo-se para ajudar a custear o curso comercial no liceu da capital de distrito, António Martins agarrou a oportunidade com mãos ambas e pôs em todos os dias da sua vida o propósito de merecer aquela bênção e aquela sorte não desperdiçando nada do que o destino lhe trouxesse. Em 1969, com vinte anos, fora para a capital trabalhar como guarda-livros de uma grande e sólida empresa para que conseguira lugar por ter o curso e por ter sido dada uma palavrinha à pessoa certa, no lugar certo e em tempo oportuno. O autor do favor, Joaquim Gomes, amigo de seu pai, não lhe pedira nada em troca, nem lhe cobrara o favor porque os favores têm muito mais força e poder quando por cobrar. Ainda assim, avançou uma graçola que deixou António a matutar:
- Deixa lá, rapaz, um dia, quando estiveres bem na vida e pensares numa rapariga para casar, vem-me buscar a minha Maria da Graça que é boa rapariga, sempre pronta a ajudar, poupada, e ainda está como Deus a trouxe à Terra, se é que me entendes.
Entendeu. E um dia foi quatro depois, em 1973. António não fazia férias, aproveitava o mês sem trabalho para pequenos trabalhos de contabilidade. Amealhava mais algum e não fazia despesa com as viagens. Habituou-se a ir a casa no Natal e na Páscoa. Para a consoada e para beijar o Cristo que o senhor prior levava pela aldeia numa cruz com um saquinho de pano para as oferendas. Quando a luz do dia fenecia, ia deitar-se para não consumir energia eléctrica. Apagava sempre as luzes quando mudava de divisão, usava o gás o menos possível comendo os alimentos pouco mais que crus e conseguia lavar-se a fazer abarba na mesma água. E assim foi poupando até que um dia escreveu ao compadre Joaquim Gomes pedindo-lhe a mão da filha e autorização para corresponder-se com ela a qual foi concedida em nota breve e elucidativa.
“Caro António,
Está concedida mão e a permissão para corresponder-se com Maria da Graça e seja rápido que a rapariga entedia-se de aqui estar e eu agradeço menos uma boca à mesa da refeição.”
Na parca correspondência que trocou com Maria da Graça, António disse-lhe que tinha pouco de seu mas o suficiente para viverem confortáveis. Casa alugada, de três assoalhadas, com mobília posta por ele e o rendimento suficiente para não passarem fome. E falou-lhe das luzes da grande cidade e das pessoas todas que nela havia e dos sons e dos cinemas e dos carros de praça às dúzias rua acima, rua abaixo. Falou-lhe de tudo o que nunca, ou quase nunca, a deixaria conhecer. Nunca se referiu a amor nem sentimentos mas a ela bastara-lhe ler sobre as luzes e os carros de praça e os cinemas para se deixar cativar. Casaram em Junho.
Em 24 de Abril de 1974, quando as ruas da capital fervilhavam de emoção e liberdade, quando o mundo se abria aos pés de uma geração, António da Purificação Martins, de vinte e cinco anos, passaria de guarda-livros a escriturário e esse seria o único efeito da revolução na sua existência. Nessa tarde que alterou as vidas e as rotinas de quase todos os portugueses, António fora pai há oito dias, a mulher estava ainda na maternidade recuperando de um parto difícil que quase a vitimara e ele colocou debaixo do braço uma pasta preta com documentos para entregar a um cliente, passou indiferente pelas gentes e pelos cravos, passou à porta da maternidade no mesmo passo sereno e firme, não quis saber do que acontecia cá fora nem lá dentro, rangeu entre dentes uma frase que deve ter sido Vão mas é trabalhar, entregou a pasta, fez o percurso inverso, sentou-se à secretária, concluiu dois processos que tinha entre mãos e no fim do dia, quando a mulher o recebeu com um brilhozinho nos olhos, à hora da visita nocturna, ele limitou-se a dizer:
- Vocês estão bem, não é assim? Eu vou andando comer uma sopa que não tarda nada faz-se noite e não quero luzes acesas. Ele gasta-se depressa mas custa muito a ganhar.
Gracinha, jovem mãe, pediu como recompensa única de o ter carregado no ventre, de o ter parido e de ter pela frente a tarefa de cuidar dele até que de cuidados deixasse de precisar, que pudesse escolher o nome da criança. E escolheu Gabriel como estava escrito num santinho de papel que o senhor prior lhe oferecera certa Páscoa.
Com medo de que lhes faltasse o pão, o tecto ou qualquer outro bem de primeira necessidade, António Martins anunciou, assim que se casou, que não gozariam férias pois os tempos não estavam para gozos. E foi preciso que o pequeno Gabriel terminasse o leite da mama, e começasse a andar, e começasse a falar, Mamã, primeiro, Dá-dá, depois, Não, depois, e muitas outras aventuradas palavras depois dissesse também Papá, e deixasse as fraldas de pano, e foi preciso que o pequeno Gabriel chegasse à idade de ir para a escola e tivesse Maria da Graça implorado que o menino fosse visto por um pediatra que era esse o costume antes de irem para a escola e a senhora professora que aceitara a matrícula assim tinha aconselhado, para que, ao ouvir invocar a autoridade da professora, António Martins tivesse falado com uns colegas, auscultado e comparado preços, e decidido finalmente levar o miúdo ao médico. Se contrariado o decidiu, mais contrariado de lá veio pois ao terminar uma consulta que quase tinha corrido na perfeição, o médico anunciara:
- E não fazia mal a este menino apanhar uns ares de praia.
- Não fazia mal, ou fazia bem?
- Ora homem, não fazia mal e fazia bem são uma e a mesma coisa. Leve esta criança a apanhar ar, a correr, a esmurrar os joelhos, a brincar na areia e a tomar uns banhos de mar. E no Inverno havia de praticar natação. O que esta criança precisa, é de mexer-se e apanhar ar da rua.
À piscina, Gabriel nunca foi, como nunca viu televisão em casa do pai porque aí nunca a houve, mas todos os anos migraram religiosamente nos primeiros quinze de Agosto para Oeiras, a banhos. Foi por essa altura e por essa razão que António Martins comprou um carro. Era um Vauxhall Viva azul clarinho que tinha sido de um professor primário, como são todos os carros usados, e estava, por isso, em muito bom estado. Foi assim que lhe venderam o negócio e assim foi que o comprou depois de muito regatear. Trinta anos mais tarde, é esse o carro que António Martins tem na garagem, em estado impecável. E conta por quilómetros percorridos as viagens anuais a Oeiras, o Natal e a Páscoa à terra. Tudo o mais continuou a ser feito a pé ou nos transportes públicos por sair mais em conta. A compra do carro, inicialmente vista como um progresso e uma esperança por Maria da Graça, depressa se revelou noutro doloroso pesadelo pois António anunciou medidas de maior restrição em casa para compensar o grande gasto.
A princípio, Maria da Graça julgou tratar-se do peso da responsabilidade de prover ao sustento do recém-casal logo seguido de um filho, mas rápido se apercebeu de que vivia no seu marido um medo constante, uma obsessão de prudência e poupança que o projectaram numa vertigem de controlo que atingira o seu auge no dia em que, ao deslocar-se às compras com a mulher como sempre fazia para controlar os gastos, António Martins disse, seco e ignorante, quando ela agarrou num pacote de pensos higiénicos:
- E isso tem mesmo de ser?
Maria da Graça corou de vergonha, não cedeu e colocou o pacote em cima do balcão do minimercado onde se aviavam habitualmente e pelo caminho rebentou num pranto de lágrimas mudas que só se fizeram ouvir em casa. António não lhe disse nada e nada foi o que ela lhe respondeu. Mas escreveu. Não a seu pai que de nada adiantaria pois que a massa e o tempero do carácter eram os mesmos, mas à única mulher que pensou pudesse compreendê-la e ter o poder de interceder por si. A sogra. Nunca recebeu resposta nem nunca ouviu um comentário que a aprovasse ou desaprovasse no queixume sentido. Soube só que houvera uma conversa de mãe e filho abafada e secreta que qualquer um deles negaria ter existido e soube também que daí em diante o marido passou a dar-lhe uma verba mensal para a administração da despensa da casa. Prestaria contas dos gastos, bem entendido, mas alargava-se o âmbito da sua acção e evitavam-se humilhações desnecessárias. Ainda assim, tudo tem o seu preço e António passou a exercitar o hábito de controlar a quantidade de comida que Maria da Graça punha na mesa perscrutando e apontando, implacável, todas as falhas. Faltas não podia haver e sobras eram o pecado supremo:
- Sempre que sobrar, come-se na refeição seguinte. Desperdiçar é um gasto desnecessário e um pecado.
E passou o tempo do seu tempo em conjunto a denunciar excessos ou gastos que, no seu entender, eram desnecessários. Foi assim com os iogurtes, foi assim com o chocolate para pôr no leite, com os primeiros pacotinhos de leite achocolatado que entraram lá em casa, com as roupas que se compravam para a juventude de Gabriel antes que estivessem inutilizadas as que tinha. E, anos mais tarde, quando o filho decidiu candidatar-se ao curso de Ciências da Comunicação, o pai disse-lhe que o expulsava de casa se fosse tirar um curso para inúteis e desempregados. Gabriel saiu à rua, arranjou trabalho, foi partilhar um quarto com um amigo, tirou o curso como trabalhador-estudante e é hoje um colunista de um reputado jornal nacional, casou, tem duas meninas e quer viver com elas tudo o que o pai não viveu consigo. Mantém com ele uma relação de respeitoso distanciamento mas nunca mais aceitou nada que viesse da sua mão.
A Maria da Graça nunca custaram tanto as privações como o facto de saber que eram desnecessárias. Nunca duvidou que algures no seu íntimo António gostasse de si. Ainda se lembra das cartas que ele lhe escrevera antes de casarem e até há bem pouco tempo relia-as para tentar encontrar no homem com que vivia o homem que a tinha convidado para a vida. Mas ele nascera um espírito inseguro e austero. E crescera assim. E quanto mais razões tinha para mudar, mais se acentuavam esses traços do seu carácter.
Hoje, deitada numa cama de hospital à espera da morte, Gracinha não sabe porque não viveu. Sabe só que se não chama vida ao tempo que por si passou. E sabe que a mudança que se aproxima só poderá ser desta para melhor.
Hoje é quarta-feira, António Martins recebeu um telefonema na empresa. Era o filho. A conversa foi séria e breve. António saiu à rua com o medo estampado no olhar, comprou umas flores e correu para a visita da tarde na ânsia de viver tudo o que tinha deixado suspenso pela vida fora. Chegou tarde.
- Tentámos ligar-lhe, senhor Martins, mas o senhor não deixou número de telemóvel, nem mesmo de casa.
- Não podia. Não tenho, nunca tive essas coisas. Passa-se alguma coisa?
Passava. Maria da Graça morrera recostada com a mesma expressão de tranquilidade sofrida que sempre a acompanhara. Está na morgue embrulhada num lençol e enfiada numa gaveta e António nada pode senão viver um tardio e profundo remorso. São estranhos, os homens, não dão em vida o que querem retribuir na morte. António da Purificação Martins tratará do funeral, mandará rezar uma missa de sétimo dia e daí em diante, faça sol ou chuva, calor ou frio, seja Inverno ou Verão, este homem rumará ao cemitério com o mesmo ramo de flores todos os sábados de manhã, oferecê-lo-á a sua mulher e conversará com ela as conversas todas que não quis ter em vida.
Quando Gabriel entrou no hospital e o abraçou e lhe disse, Pai, quer que trate das coisas? Ele respondeu com a firmeza de quem tem uma missão a cumprir, Não filho, eu trato de tudo. Ao menos isto, ao menos agora. Foi a casa buscar os documentos que calculava necessários ao processo, passou pelo trabalho onde comunicou o sucedido e solicitou a dispensa por nojo, abriu a lista telefónica que sempre tinha na sua secretária, procurou as funerárias da zona e dirigiu-se para a que lhe pareceu mais perto.
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