O Clã do Comboio - A Face do Sono


A Face do Sono
À medida que vou viajando, os aspectos mais óbvios vão-se tornando comuns e o meu olho observador procura o menos comum. Não quer dizer que encontre aspectos menos interessantes, pelo contrário, só não estão visíveis a olho nu.

Algo que comecei por notar sem consciencializar, mas de que agora tenho a certeza constitui um fenómeno interessante é aquilo que chamei a face do sono.

Não sei se há alguma relação entre a nossa disposição, o nosso carácter, o estado da nossa alma e a forma como deixamos transparecer isso na face enquanto dormimos. Admito que haja. Tenho quase a certeza, empírica, de que há. E vem-me esta certeza de ter começado a "coleccionar" faces de pessoas que dormem no interregional das 7:18 entre Entroncamento e Lisboa.

É verdade, não dormimos todos da mesma maneira. E a diferença começa aí. Há os que se mantêm direitos e recostam a cabeça, há os que recostam o corpo todo, há os que se apoiam no braço do banco e tombam para a esquerda, há os que se encostam à janela e enquanto dormem vão dando pequenas e involuntárias cabeçadas no vidro, há os que encostam o queixo ao peito, tombam a cabeça para a frente e assim é que dormem, há os que dormem com música nos ouvidos e os que o fazem sem ela. E há os que têm o sono leve e vão dormitando e intermitentemente abrindo um olho para ver o ambiente do espaço, assim como há os que dormem a sono solto até ao destino. Tudo isto é interessante, mas nada comparável ao verdadeiro interesse: o da face do sono.

Um destes dias, entrei no comboio, sentei-me e sentou-se à minha frente uma pessoa daquelas que dormem sobre o queixo. E não pude deixar de reparar nela porque dormia profundamente mas a sua face estava sisuda, preocupada e, mais do que isso, sofrida. Diversas vezes tive a sensação de que ia chorar. Não aconteceu, mas juraria que esteve quase. Depois reparei que havia mais pessoas assim. Franzem as sobrancelhas enquanto dormem, cerram os dentes e os lábios, fecham os olhos com força e sofrem o sono. Outra categoria é a dos pensativos. Têm um sono sério, uma face fechada e sisuda. Não há ali sofrimento mas seriedade. Estes, normalmente, mantêm o corpo direito e recostam somente a cabeça.
Um dos grupos mais interessantes é o dos desleixados. Tudo é desorganização, até na forma como dormem. Encostam-se à janela, alguns colam-se literalmente a ela, e vão dormindo e cabeceando. Os braços caem desorganizados pelo corpo e transparecem indiferença. Alguns destes sorriem durante o sono. Mas, os mais engraçados, que até nem são a maioria, são os tranquilos. Estes tipos, não sei o que fazem na vida nem à vida, mas sei que poderia vir de lá o comboio que nada os acordaria! Recostam o corpo todo, alguns destes, além do corpo, também recostam a cabeça. Normalmente fecham a boca mas há, nesta categoria, os que vão dormindo como se estivessem para comer a carruagem, de boca escancarada. E o que os une é uma clara expressão de tranquilidade. Também entre estes há os que sorriem enquanto dormem profundamente. Só acordam no destino. Vá-se lá saber como sabem que chegaram, o certo é que sabem. São invejáveis. Até a dormir transparecem tranquilidade, como se nada fosse com eles..

E assim, à medida que a máquina rola e os solavancos se repetem e os sons se propagam, a face do sono viaja no interregional das 7:18 e por ela, vemos o que vai no mundo. A preocupação e o sofrimento, a seriedade, a desorganização e a tranquilidade de quem vai de Entroncamento a Santa Apolónia na mais absoluta paz do senhor. Todos têm algo em comum. Durmam como dormirem, estas pessoas têm de ter o nosso respeito porque ainda a noite banha a Terra já elas estão a trabalhar. A sono solto.

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