O Clã do Comboio - O "Picas"

O "Picas"
Carinhosamente apelidado de "Picas", o senhor revisor não é um homem como outro qualquer. É uma instituição.
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Como todas as instituições, também o picas sofreu as consequências da evolução dos tempos e das tecnologias. A primeira grande diferença tem a ver com o aspecto. Antigamente, o picas vestia de cinzento e tinha um boné. E era uma entidade anónima. Hoje, continua a vestir de cinzento, mas o fato tem uns vivos verdes que combinam com a gravata e com a chapinha que traz ao peito com o seu nome. O picas deixou de ser anónimo. Agora tem nome ao peito. Para nós, isso interessa pouco porque, quando ele surge ao fundo da carruagem, a frase que se ouve é "Já lá vem o picas".
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Os picas agora têm atitude. Dão os bons-dias, as boas-tardes, as boas-noites e quando alguém vai a dormir, em vez de darem dois berros como antigamente, dão um toque suave no ombro e dizem, "Faz favor...". Alguns fazem isto com naturalidade. Outros sorriem e vê-se que estão a gozar o momento ao jeito de "Já acordei mais um!" Há os picas altos, baixos, magros, gordos, novos, velhos e embora se esteja a promover a imagem do picas novo e elegante, com ar enxuto e competente, ainda persistem alguns, poucos, dos meus especimens preferidos. Eu gosto do picas baixinho, atarracado, gorducho, sem a gente perceber muito bem onde acaba a barriga e começam as pernas, coradinho e com o olhar desafiante como quem está à espera de um prevaricador para lhe assentar duas mãos abertas à moda antiga. Não sei como é que ele consegue, mas este tipo de picas tem sempre os colarinhos da camisa por cima da gola do casaco e, embora a gravata dele seja igual à dos outros, parece sempre que teve de sobreviver a um processo de maus-tratos para ali chegar.
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Antigamente, o picas tinha duas ferramentas. Uma bolsa de cabedal à cintura para as moedas e um furador para picar os bilhetes. Ferramenta esta que, de resto, é a responsável pelo carinhoso apodo de "Picas". Acontece que agora deram-lhes umas maquinetas cinzentas com um ecrã que parecem um multibanco portátil. Servem as ditas para verificar a validação dos bilhetes comprados em cartão com chip. Modernices. Embora haja cada vez menos bilhetes em papel, o certo é que ainda os há e por isso é vê-los passar nos corredores todos janotas, de fatinho de fazenda, chapinha na lapela, maquineta electrónica na mão e, a identificá-los, o picador enganchado no mindinho. É uma ternura!

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