O Duelo

Era uma vez um lorde que se zangou com outro. Já não sei bem a propósito de quê. Acho que tinha a ver com umas questões de terrenos e extremas e medidas e violações das ditas. E esse problema invocou querelas antigas. E o lorde, ferido no seu orgulho, certo de que estava coberto de razão, senhor da sua verdade, manipulador dos seus juízos de valor, marcou a sua posição e fez as suas exigências. O outro, assim lhe chamaremos, não cedeu. Não concordou. E não lhe satisfez as exigências. Tinha razões que só a ele assistiam e assistia compreender. Ora, não fosse o caso ficar em impasse e a honra manchada, o lorde esbofeteou o outro com a luva branca da palavra e desafiou-o para um duelo que, por duelo ser, acabaria com a morte de um e poria fim à querela. O outro revoltou-se todo por dentro. Não lhe parecia necessária tão radical solução, mas aceitou. Preparou a alma para o durante e o depois. Rearranjou e perspectivou a sua vida de acordo com todas as consequências possíveis do duelo. E treinou-se. Treinou a posição de partida com o braço levantado e a pistola na mão virada ao céu, treinou os passos a dar, quando virar-se, quando esperar o disparo do outro, como encarar a bala dele, quando fazer o seu, a firmeza da mão, a força no premir do gatilho, a pólvora a salpicar a vista, o que fazer se sobrevivesse, como tratar a viúva do adversário, os filhos, como apoderar-se das terras e dar-lhe amanho e cultivo. E, nos poucos dias que decorreram entre ser desafiado e apresentar-se a duelo, o outro mudou por dentro, fez-se um homem diferente e olhou para o mundo de diferente forma. Aparelhou o coração e fortaleceu a mente para apresentar-se a duelo.

Quando os padrinhos exibiram as pistolas numa caixa de madeira exótica forrada a veludo no interior, o lorde exclamou:

- Afinal, já não quero o duelo, não foi nada assim tão grave, vamos ser vizinhos e amigos como sempre fomos.

O outro ficou parado, especado, à espera do duelo que não pedira mas para o qual aparelhara o coração e fortalecera a mente. E ficou ali. Perdido. Sem saber o que fazer com a pistola que tinha na mão nem com a vida que tinha nas veias. Fizera-se um homem diferente para travar o duelo e já não havia duelo. E foi estranho o que depois aconteceu. O outro tirou uma pistola da caixa. Encolheu o braço e virou-a ao céu. Virou-se de costas para o local onde ainda agora estava o lorde. Fingiu que estava de costas para ele. Foi caminhando e contando os passos. Quando terminou, virou-se tranquilo, esperou o tempo que o lorde levaria para dar o tiro que não deu. Estendeu o braço. E disparou no vazio.

Soube sempre que o lorde lá não estava. Não soube nunca porque travou o duelo sozinho. Soube só que algo em si o obrigara a terminar aquilo para que se preparara. Um homem não aparelha o coração nem fortalece a mente em vão.

NetWorkedBlogs