O Dia em que Conheci Lola


Estava exausto.

A vida de um detective particular é dura. Muito fustigada por esperas em carros à custa de cafés cujos copos de plástico se amontoam no chão à frente do banco do passageiro, dos hambúrgueres semicomidos, sacos de batatas fritas e tudo o que indicie a alimentação menos recomendável possível. Ultimamente já nem o trabalho era motivante. Resumia-se a deslindar casos previsíveis de adultérios mal dissimulados, umas fotos flagrantes e o resto seriam discussões em que, felizmente, já não tomava parte. Também lhe apareciam recentemente muitos casos de cobranças, de descobrir onde é que os supostos devedores tinham dinheiro ou o gastavam. O clima exótico e a empolgação de deslindar um caso difícil com um crime envolvido já não lhe aconteciam há anos. Em casa, o ambiente degradara-se devido à sua ausência e à clara falta de paciência para ser um chefe de família de uma família com uma sogra decrépita, um filho todo vestido de preto com piercings pelo corpo todo e um cigarro nojento na ponta dos dedos amarelos e uma mulher mal arranjada, sempre a cheirar ao óleo de fritar pastéis de bacalhau para vender a umas pastelarias e depois gastar em arranjos de unhas e cremes para a cara que era suposto rejuvenescerem-na mas cada vez a deixavam mais pateticamente envelhecida.

Foi por isso que não hesitou em dar meia volta ao seu velhinho mas estável e fiel Mercedes D190 de 1988 ainda com os cromados originais e dirigiu-se para a pousada "Repouso Tranquilo". Passava ali dezenas de vezes por semana e interrogava-se sempre quem seriam os sortudos que ali ficariam e com quem ficariam. Desta vez seria a sua vez. Um telefonema, Querida tenho uma vigilância e hoje não vou dormir a casa, puta de vida. E assim se desculpou e tirou aquela noite só para si. Queria estirar-se no conforto limpo e asseado de um quarto de pousada e dormir como se o mundo fosse acabar e ficar só e isolado do resto da Humanidade ruidosa.

A pousada tinha um portão com uma estrada estreita e arborizada que desembocava num enorme largo com uma fonte no meio de frente para umas escadas antigas que davam acesso ao interior do "Repouso Tranquilo". As rodas do Mercedes pisaram a estrada de brita e fizeram aquele som de comprimi-la semelhante a milhares de sardinhas presas na rede quando esta sai do mar. Estacou. Saiu do carro.

Colocou o chapéu de feltro a fazer lembrar Bogart e emergiu a sua figura alta com a gabardina a cair-lhe ao longo do corpo por cima de um fato de fazenda castanho escuro e visivelmente desgastado e amarrotado. Ainda assim, mesmo com a curva do hambúrgueres a anunciar-se, era uma figura evocativa e interessante que guardava por dentro um homem em destroços. Entrou. Pediu um quarto. Entrou na banheira cheia de água, deixou um braço de fora, pendurado com um copo de uísque na mão e um cigarro enfiado na boca. Adormeceu. O copo caiu ao chão e só não se partiu porque a toalha de receber os pés o amparou. O cigarro ardeu-lhe na boca até que a cinza se lhe espalhou pelo peito e pela água. Quando acordou, resolveu reagir. Estava mais descansado. Tomou um duche revigorante e demorado, vestiu a roupa interior, as calças e a camisa e desceu para o bar. Não sabia ainda, mas era aí que conheceria Lola.

Sentou-se ao balcão do bar. Era um enorme balcão de madeira exótica em semicírculo com bases para copos espalhadas e um tecto falso em madeira de onde pendiam centenas de copos de pé em fileirinhas organizadas. Era enorme o bar. Tinha uma zona com um snooker onde não estava ninguém e um amplo espaço cheio de sofás confortáveis em tons de cereja com ramagens douradas. A um canto, uma lareira e uma televisão. Todo o espaço estava obscurecido e em profundo silêncio. Pediu um martini e ficou a saboreá-lo bem como ao repouso. Tudo aquilo estava perfeito. Pensou ficar por ali a saborear a vida e a bebida quando chegou a turba, o ruído, as vozes altercadas, os risinhos. Sem se virar para a rua diria que eram umas dez pessoas, quando se virou reparou que eram só três. Espanholas!

Era todo um folclore, toda uma luz e uma cor e, sobretudo, era todo um ruído de saltos altos a bater no chão, pulseiras e colares a chocalhar e as vozes, as vozes entusiasmadas tentando falar umas por cima das outras naquele sotaque áspero, arrastado e cantarolado que é a voz da Andaluzia. Uma delas trazia uma blusa estampada em pele de tigre, muito colada ao corpo, por cima dela um pequeno colete de pele com tiras pendendo das mangas, calças de ganga muito justas, cós baixo, a abrirem em boca de sino a partir do joelho fazendo umas pregas, botas de pele castanha, de cano alto e com uns saltos a desafiarem as leis da física, teriam aí uns onze centímetros, era alta e esguia e tinha o cabelo castanho com madeixas loiras, a enfeitarem-lhe um rosto longo onde se destacavam os olhos castanhos brilhando sobre a pele morena. Vinha muito maquilhada e enfeitada e trazia uma mala de mão. A outra trazia uma mini-saia preta, muito curta por cima de umas meias pretas em rede que terminavam num sapatos de saltos íngremes que tinham uma fivela de fingir em brilhantes também de fingir, uma camisola bege de gola alta mas muito larga, de tal forma que era possível ver-lhe o tentador vale entre os seios redondos e grandes, tinha um gancho castanho a prender-lhe o cabelo loiro. Vinha muito maquilhada e enfeitada e trazia uma mala de mão. A última delas, um pouco mais reservada nos comentários trazia um corpete encarnado como se fosse uma peça de roupa exterior, meias de rede, uma saia preta travada um pouco abaixo do joelho, dava passadinhas pequeninas e apressadas, a pele muito clara e uns olhos de água, verdes, a completarem um sorriso amplo e bonito, cabelo encaracolado, castanho clarinho com madeixas loiras, as ancas bem definidas, sapatos de salto alto pretos, um colar com pedras de formas diferentes pretas e um anel dourado com a forma de uma flor. Vinha muito maquilhada e enfeitada e trazia uma mala de mão.

Ele ficou indeciso. Não sabia se queria continuar o seu pacato martini e a sua noite de repouso ou assistir àquele espectáculo de luz e cor. Ficou. Elas encostaram-se ao balcão, pediram bebidas generosas e ficaram à conversa, falando alto, dando risadinhas e olhando de lado para o detective particular. Uma delas, a do corpete encarnado, aproximou-se dele, tirou uma cigarreira prateada da mala de mão, puxou de um cigarro, apontou-o à boca, esticou-se para ele e disse:

------- Por favor, caballero.

------- Por supuesto.

Acendeu-lhe o cigarro, reparou nos seios que, não sendo grandes, eram muito bem formados, jovens, mais jovens do que a própria.

------- En viaje?

------- No, no, nosotras somos… Maria… como se dice en portugués lo que hacemos nosotras…

------- Lo dices como en todo el mundo, chica, somos putas!

A do corpete encarnado não queria bem aquela resposta mas, uma vez dada, teve de servir. Ela queria dizer qualquer coisa como acompanhantes mas a verdade é que tudo se resumia àquela palavra seca e embriagada. E teve de servir. Ela quis traduzir-lho. Confirmar-lho mas ele não deixou.

------- O que você faz é nobre. Rouba os homens à solidão e à impotência, retira-os das vidas mesquinhas que vivem e transforma-os em reis por uma noite.

------- Lo que dices eres sensillo, aunque no sea castelhano!

E largaram-se a rir. O detective falhado e triste e a puta espanhola que queria ser acompanhante. E ficaram conversando toda a noite, sobre os homens, as mulheres, as bebidas, as marcas dos melhores charutos. E as outras foram saindo acompanhadas por homens que as vinham buscar e ela foi ficando, e foi desperdiçando uma noite de negócio em troco de alguma atenção, alguma dignidade. Ele perguntou-lhe se ela o queria acompanhar. Ela disse que sim, por quinhentos euros em notas. Ele foi-se à máquina Multibanco no átrio, levantou-os, pediu um envelope na recepção, colocou-os no envelope e quando chegou ao pé dela estendeu-lho e disse:

------- Tome. Venha.

E ela foi. E continuaram conversando. Ele pegou no telefone e pediu uma garrafa de espumante e estiveram beberricando e conversando. E ele explicou-lhe a miséria de uma vida falhada, de sonhos desfeitos e ela contou-lhe como se sacrificava de cada vez que fazia dinheiro, de como desejava que tudo acabasse depressa, as manias dos velhos e a presunção dos novos. E quando lhe disse:

------- Usted ha pagado. Hemos que hacerlo.

------- Hagame un masaje.

E ela fez. Virou-o de barriga para baixo, sentou-se no rabo dele e massajou-lhe as costas e o pescoço e quando o relaxe estava a atingir o ponto de não retorno, o do sono, ele perguntou:

------- Como te llamas?

------- Lola.

E adormeceu.

Na expectativa de merecer o dinheiro do envelope, ela ainda lhe disse:

------- Cariño…

Ele dormia profundamente. E assim ficou.

-

O dia nasceu solarengo e frio. Um raio de sol rasga a escuridão do quarto. Um homem dorme profundamente e uma espanhola bonita sai da casa-de-banho com um duche no corpo e os pulsos perfumados. Veste-se. Espreita o dia pela janela. Beija o detective adormecido na testa. Pega no telefone, pede um pequeno-almoço generoso. Espera por ele, recebe-o. Coloca-o junto à cama do detective sem lhe tocar. Pega numa folha daqueles bloquinhos de hotel e escreve “Gracias!”. Quando sai, tudo fica calmo. A roupa dele espalhada pelo chão, o perfume dela serpenteando o ar, e um envelope com o símbolo do hotel em cima da mesa-de-cabeceira. Lá dentro estão quinhentos euros.

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