O Clã do Comboio - Etnias

Etnias

Na última história do Clã do Comboio, eu escrevi, a certa altura, que, ou me enganava muito, ou o Rapaz do Fato Cinzento ainda ia dar que falar. Pois, já deu. Eu reconheço o potencial das pessoas. Eu sei quando vive num homem de fato cinzento um tipo que gosta de dar barracada! Mas, uma coisa é verdade, quando é para dar barracada, ao menos que seja em grande. E foi. Comecemos pelo princípio.

Segunda-feira. 7:18 no Entroncamento. Assinala-se o regresso de férias da Rapariga com Brinco de Pérola. Assinala-se a chegada atrasada da Mamã das Duas Crianças que tem o marido numa comissão no estrangeiro. Chegou mais tarde do que a Rapariga do Riso Fácil e isso é difícil. Entrou esbaforida, sentou-se sorridente, fez com as mãos um sinal de coelhinha saltitante e disse:
- Ele já cá está, veio no sábado.
- Então e isto são horas?
- Agora é sempre a aproveitar até ao último minuto!

Lá demos os bons-dias uns aos outros, retomámos conversações sobre o trabalho do Rapaz do Fato Cinzento após termos reparado que ele tinha rapado a tentativa de barba que trazia na cara. E foi então que ela se deu. Ele já havia confessado que tinha um trabalho ingrato que não identificaremos por razões óbvias: há que protegê-lo dele mesmo! Enfim, ele lê e analisa uns contratos e depois chama a atenção para as letras miudinhas que ninguém lê e lembra às pessoas que quando elas assinaram as letrinhas que vieram tramar tudo já lá estavam. E foi por isso, por irmos a comentar esta circunstância, que se deu a pequena conversa que se transcreve com pouca corrosão:

Escritor: Então e nunca foi ameaçado?
Rapaz do Fato Cinzento: Já fui já, muitas vezes. Uma vez até me fizeram uma espera. Foram uns ciganos. Os ciganos são tramados. Puseram-se à minha roda, cercaram-me e queriam-me roubar o processo das mãos. Os ciganos são tramados.
Rapariga do Riso Fácil: Pois, eles quando se juntam vem a família toda...
Rapaz do Fato Cinzento: É verdade é... puseram-se ali de volta de mim e já não me queriam deixar ir embora com o processo. Os ciganos... ui... são mesmo tramados!

Por esta altura a Mamã das Duas Crianças parecia que estava com espasmos. Abria muito a boca, arregalava muito os olhos, fazia sinais com as mãos e eu não percebia nada do que ela estava a tentar comunicar e foi por isso que resolvi esclarecer:

Escritor: Mas olha lá, o que é que tu queres?!
Mamã das Duas Crianças: VAI ALI UM!!!

E ia. Era um sujeito de etnia cigana, sentado três lugares mais à frente na mesma correnteza de bancos em que ia o Rapaz do Fato Cinzento. E eu fiz-lhe uns sinais do tipo Olha que te cortam o pescoço e ele olhou para lá, fez-se lívido, olhou para o chão, procurou um buraco e como não havia disse com grande elegância:
- E se mudássemos de conversa?!

A risota não podia ser maior. Ele tinha-se enterrado completamente e ainda só sabia da missa a metade. A outra metade íamos-lhe contar a seguir por sms! Após este episódio, entrou o VM em Santarém. Vinha com a Senhora da Revista de Culinária. Acho que estavam os dois a discutir as vantagens e desvantagens da salada de gambas thai e das vieiras recheadas. Ele percebeu que estávamos na galhofa e antes que cometesse o mesmo erro, resolvi enviar-lhe uma sms a contar o sucedido. E foi essa mesma sms que enviei ao Rapaz do Fato Cinzento para ele ficar a saber a outra metade da missa. É esse singelo textinho que aqui vou transcrever:

Ele começou na brincadeira
por causa do trabalho dele.
Eu perguntei-lhe se nunca
tinha sido ameaçado. Ele disse que sim,
por ciganos, e começou a dizer mal
dos ciganos, até que a Mamã das Duas
Crianças lhe conseguiu dizer que ia aí um.
O que está atrás de ti. Entretanto, o que ele
não sabe é que a Mamã das Duas Crianças
é casada com um!!!

O VM tirou-lhe fotos antes de ele começar a ler a sms, durante e depois. Ele ficou tão atrapalhado que só conseguia dizer Isto hoje correu muito mal... E depois, para desanuviar a coisa, trocámos umas ideias sobre a experiência gastronómica do VM com as vieiras recheadas e a salada de gambas thai. Por entre dentes, lá o fomos avisando que era desta que ele aparecia com as rótulas partidas. Ele ria-se, mas acho que era um riso um pouco amarelo. Ora, quando chegámos a Vila Franca de Xira, o homem de etnia cigana saiu e foi à sua vida e nesse momento a viagem teve a sua pièce de resistence. Foram duas frasesinhas que o Rapaz do Fato Cinzento trocou com o VM:

Rapaz do Fato Cinzento: Ufa, desta já me safei!
VM: Qual quê? Ele saiu para ir avisar os outros e agora fazem-te uma espera no Oriente!

Uma coisa é verdade, quando o Clã do Comboio chegou a Lisboa ninguém se lembrava que era segunda-feira, todos levavam um sorriso nos lábios e um brilhozinho de esperança no olhar. Está bem, todos, todos, talvez seja exagerar. Era capaz de haver um com um ar mais apreensivo. O certo é que se confirmaram as minhas suspeitas. O Rapaz do Fato Cinzento é mesmo um companheirão, tem uma grande capacidade de auto-crítica e sofrimento e foi logo ali convidado para participar no primeiro almoço do Clã. É que quem supera uma prova de fogo como a dele tem mesmo de ser reconhecido... Muitas histórias se esquecerão, mas o dia em que o Rapaz do Fato Cinzento se queixou de ter sido cercado por ciganos no meio de uma família deles... esse dia ficará para sempre na memória colectiva do Clã. Ou isso, ou as vieiras recheadas!

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