Nyankosem
Não estranhe o leitor que seja esta história passada em terras estrangeiras. Muito cristãs umas, mas pouco católicas, sem pejoração na expressão, e nada católicas, nem tão pouco cristãs, as outras. Vem isto a suceder por via de outro distintivo traço dos milagres que é acontecerem sem olharem a onde nem a quem. Crentes e descrentes, praticantes e apáticos, europeus, africanos ou de qualquer outra proveniência, brancos, amarelos e todas as outras tonalidades de pele, altos, baixos, sãos e enfermos, muito conhecidos estes por razões bíblicas, na Graça do Senhor ou fora dela. De facto, para que se seja alvo de um milagre, basta ser-se humano, nem vivo é preciso estar, atesta-o Lázaro e a sua ressurrecta bem-aventurança.
Dito isto, importa
sabermos que estamos em Londres e à nossa volta ouve-se a música sussurrada de
máquinas trabalhando, algumas apitam como as caixas registadoras dos
supermercados. Mas aqui não se vendem mercearias. Vende-se saúde. É um quarto
de um hospital com uma cama só onde está uma mulher derrotada pela doença, pelo
sofrimento e pela falta de esperança. Tem os braços espetados de sondas e
cateteres, o cabelo branco e despenteado, o olhar mortiço na direção da jovem
médica que a veio visitar e está em pé, ao lado da paciente, olhando os documentos
presos com uma mola à papeleta. É elegante. Cai-lhe bem, a bata. Realça-lhe as
formas redondas, musculadas e firmes. E, deixemo-nos de rodeios, conversam.
Pois contemos o que da conversa mais interessa contar.
- Então, como está?
- Para morrer!
- Para morrer?
- Nem um milagre me salva.
- Acredita em milagres?
- Se acreditasse não estava aqui! Nada
disso existe, menina! Onde está quem faz os milagres? Porque não os faz quando
são precisos? Onde estão os milagres?
- Os milagres vivem em nós e somos nós
que os tecemos com coragem, com fé, com força de vontade. Todos nós temos
milagres na alma. Por vezes, vivemos uma vida inteira, morremos, vamos a
enterrar e nunca chegamos a acordá-los. Outras vezes, por necessidade extrema,
por vontade férrea ou simples fé, despertamo-los e fazemo-los ou eles vêm ter
connosco.
- É tão jovem. Fala assim porque ainda
é muito jovem. Tem a pele lisa e a cabeça em bom estado. Nunca sofreu. Só por
isso fala assim.
- Quer ouvir uma história? Um
verdadeiro milagre?
- Eu cheguei a esta situação esquisita
em que tenho pouco tempo e o tempo todo do mundo e é por isso que tenho tempo
para ouvi-la. Assim a menina o tivesse para contá-la.
- Para si, arranjo-o.
A médica puxou uma
cadeira, sentou-se confortavelmente ao lado da mulher doente que não acredita
em milagres, dobrou uma folha para trás e ficou com uma outra, branca e lisa, à sua frente para poder ir rabiscando enquanto contava a história, assim como
quem distrai o corpo todo para que o cérebro funcione melhor. E começou.
Era uma terra quente e
árida, pobre de vegetação, mas prenhe de vida. Era uma terra onde o sol se
mostrava enorme e redondo e tingia as tardes de laranja. As pessoas tinham a
pele negra e macia e o seu quotidiano dividia-se entre o cuidar dos animais
magros para lhes aproveitar o leite, a urina, o sangue e, ocasionalmente, a
carne e a manutenção das três casas do lugarejo. As mulheres cozinhavam em
enormes panelas de barro mal cozido e os homens fumavam e decidiam. Dormiam no
chão em cima de peles e por baixo de telhados de ramos e folhagem atada. Os
dias duravam eternidades doiradas e quentes, a espaços raros, copiosamente
varridos por águas breves e devastadoras. As noites eram límpidas e brilhavam
estrelas infinitas no firmamento que tinha o tamanho do universo todo e pouca
ciência era precisa para saber-se isto. Pelos três casebres dividiam-se vinte e
uma pessoas. Um casal mais velho, os seus três filhos, as sete mulheres deles e
nove crianças filhas dos três homens e suas mulheres.
Nyankosem tem quatro
anos e é feliz. Está magra, a menina. Toda a ossatura é visível, mas ela não
sabe o que é estar gordo, nem tão pouco sonha o que é ter mais. Mais roupa,
mais alimentos, mais conforto. Veio ao mundo neste mundo que conhece e é nele
que passa os dias eternos e as noites estreladas brincando, explorando,
conversando com os adultos, aprendendo a vida e as rotinas e as tarefas nela.
Nos últimos tempos tem reparado que os adultos falam alto uns com os outros,
ralham agressivos como se qualquer coisa nesta precária ordem de coisas
estivesse para mudar. E estava. Nesses momentos corria para a latrina, um
buraco no chão rodeado por quatro paredes erguidas com galhos e vegetação a
cerca de cem metros das casas, tapava os ouvidos com as mãozitas magras e
ficava à espera que as conversas voltassem ao sussurro normal das pessoas que
falam umas com as outras entendendo-se, e só depois voltava para junto deles.
A tarde está quente
como todas as tardes debaixo deste céu. A enorme bola de fogo começa a desaparecer
de modo que já não é bem redonda, falta-lhe um bocadinho que a terra engoliu.
Toda a família está reunida, a conversa começa em tom normal que vai crescendo
e em pouco tempo estão de novo discutindo com violência. Nyankosem não suporta
aqueles gritos e foge para a latrina. Senta-se a um canto e espera. Ali cheira
mal, mas está protegida daquela altercação desenfreada. O tom da discussão
parece aumentar, há mesmo gritos. Nyankosem fecha os olhos e tapa os ouvidos
com as mãozitas aflitas. Aquilo durou algum tempo e, subitamente, parou. Parou
e gravou na mente de Nyankosem algo que nunca mais esquecerá, um silêncio
sepulcral e absoluto de que, por ironia, virá a ter medo para o resto da sua
vida. Deixou-se ficar por longos momentos até que o silêncio se tornou
insuportável. Era como se não conhecesse o espaço em que fora criada.
Dirigiu-se às casas e foi então que viu o que nenhuma criança deveria ver.
Apercebeu-se logo de que não tinha mundo, estava completamente só e perdida. À
sua volta, a sua família jazia chacinada, cortada em pedaços, degolada. Havia
um intenso cheiro a sangue. Nyankosem teve medo e chorou. Um choro lancinante.
Nada nem ninguém a ouviu, julgou ela na altura. Hoje, não está certa disso. Sem
saber o que fazer, deambulou por entre os corpos, de braços caídos e mãos
abertas e quando deparou com uma panela de barro no chão daquelas onde se
costumava cozinhar para todos, saltou lá para dentro, puxou a tampa,
encolheu-se no escuro e esperou. Só um milagre a salvaria.
Mal anda a Humanidade quando
precisa de milagres para salvar-se de si própria.
O sol percorreu
lentamente a terra alaranjada durante três longos dias e retomou a caminhada ao
quarto. Era fim de tarde. Nyankosem já quase não dá acordo de si. Não sabe se é dia,
se é noite. Não sabe há quanto tempo ali está. Não chora porque não tem força.
Ouve passadas pesadas e ritmadas ao longe. Não quer saber. A sua vida já não é
sua. Os homens e as mulheres que chacinaram a sua família vieram visitar o
local, tentar perceber se, por milagre, alguém escapara, se há ali algo que
interesse levar. É uma mera visita de reconhecimento. Viram os corpos com
pontas de paus, o cheiro nauseabundo não parece afetá-los, por curiosidade, um
homem alto e atlético destapa a panela com a ponta de uma catana. Dá um salto
para trás, assustado. Começa a chamar, os outros acorrem, ele pronuncia, Maldito verme, e ergue a catana,
Nyankosem recebe o choque de luz e não consegue ver mas pressente o que vai
acontecer. Não reage, não consegue. Quando o golpe é desferido, uma mulher alta
e possante, com pinturas de guerreira, segura-lhe a mão e grita:
- Basta! Que coragem é a tua?
- Todos os vermes devem morrer!
- Olha para essa criança, parece-te um
verme? É ameaçadora para ti? Achas que tem idade para ter aprendido os costumes
deles? Daqui por anos tem dois braços para servir-nos.
- Não fazes sentido. Queres poupar uma
criança, mas mataste-lhe toda a família onde havia mais crianças.
- Faço sentido, sim. Tu e eu não
matamos por matar. Matamos por nova ordem. Uma ordem comandada por homens mas
exigida por Deus. Achas mesmo que ela sobreviveu à chacina por nossa culpa ou
vontade? Ou terá sido Deus que a poupou? E diz-me, cabeça de burro, se a
poupou, porque o terá feito? Pensa! Pensa, homem! Esta criança é nossa. Não sei
como, mas está aqui para servir-nos.
- Se não a matares, marca-a para quando
te arrependeres, te lembrares que a devias ter liquidado.
Assim fez. Tirou da
cintura uma tira de pele que usava para estrangulamentos e para prender à cinta
pequenos animais capturados e enrolou-a à volta do braço da criança, um pouco
acima do pulso. Fê-lo com força suficiente para cortar a carne até que
Nyankosem começou a sangrar. A pobre nem chorou. Não conseguia sentir para
tanto. Depois, atou as pontas e deixou-a ficar. Agarrou na criança ao colo e
levou-a para a sua aldeia onde lhe cobriu a ferida com ervas, lhe deu de comer
e beber, a lavou e a deitou. Nyankosem esteve trinta e dois dias sem se mexer
nem dizer palavra. Ao trigésimo terceiro dia, quando lhe foram levar alimentos,
ela disse:
- O meu nome é Nyankosem.
A alma que lhe levara
a comida abriu os olhos e a boca de espanto e correu para os outros elementos
da tribo gritando, Falou, ela falou, o
pequeno verme falou. E quando conseguiu acalmar-se, exclamou, Disse que o seu nome é Nyankosem. Os
outros ouviram, trocaram olhares pesados entre si. Todos sabiam que aquele nome
significava A Palavra do Deus que Está no
Céu. A guerreira olhou um companheiro e disse-lhe com arrogância:
- Vês, cabeça de burro, vês que todas
as coisas têm um sentido? Percebes agora que não era avisado liquidá-la?
O tempo passou. Trouxe
cinzentos à memória, Nyankosem acabou por sair à rua, brincou com as outras
crianças, conversou com os adultos, conquistou-lhes o respeito e até a
admiração, integrou-se na tribo. Pairava sempre na sua mente uma desconfiança,
um temor secreto, mas, com o tempo, percebeu que era estimada e protegida por
todos.
O clima de guerra
adensou-se, os guerreiros partiam cada vez com maior frequência e as liberdades
pessoais foram limitadas por razões de segurança. A fome aumentou. Os
confrontos tornaram-se cada vez mais frequentes, Nyankosem mudava cada vez com
maior frequência de povoação. O caos instalou-se. Um dia, apareceram uns homens
de tez pálida, roupas verdes e chapéus azuis, distribuíam água, comida,
medicamentos e algumas roupas. Foram eles que organizaram o campo. E foi nesse
campo, onde todos partilhavam tudo, até o espaço para estar, que Nyankosem
presenciou outro milagre. Por esses dias estava doente. Bebia pouco, quase não
comia, deixara de querer brincar e passava o tempo sentada no chão com as
pernas abertas riscando a terra. Uma pessoa de pele clara andava passeando pelo
campo de concentração distribuindo alimentos e perguntou a um soldado quem era
a menina do olhar triste. O soldado chamou um dos elementos da tribo e este
contou toda a história da pequena.
Nyankosem foi adotada,
trazida para uma terra estranha que lhe provocara um choque quase tão grande
como ver a sua família chacinada. A água corria das paredes, as latrinas tinham
assentos, havia pequenos sois no teto das casas que podiam acender-se e
apagar-se quando se queria, caixas com imagens em movimento que mostravam o
mundo, todos os mundos, as pessoas não se transportavam a pé ou em animais, mas
em enormes latas com rodas. Tudo era novo e surpreendente. Tudo era demasiado.
As pessoas aprendem e adaptam-se e foi isso que aconteceu com Nyankosem. Isso e
o milagre de uma família pacífica. O milagre do amor e da harmonia.
Fez-se silêncio. A
senhora doente que não acredita em milagres perguntou à médica:
- Já acabou?
- Já. Gostou?
- Gostei.
Depois, pegou-lhe na
mão e procurou-lhe o braço debaixo da camisola. Era liso e macio. Pegou-lhe no
outro e fez a mesma coisa. Era rugoso, com cicatrizes à volta do braço como se
fossem pulseiras todas juntas. A médica tinha o olhar húmido e brilhante. A
senhora doente que não acredita em milagres deixou fluir as lágrimas:
- Desculpe, menina. Ainda há pouco
disse que não sofreu.
- Não importa o que sofremos, importa o
que aprendemos com o sofrimento. Eu aprendi a acreditar no dom da vida. É esse
o verdadeiro milagre.
Contra todas as
expectativas médicas, a senhora doente que não acredita em milagres foi
operada, melhorou, recuperou e, seis meses após a conversa com a médica, teve
alta e está de saída. A filha veio buscá-la. Tem dois sacos a seus pés, está
vestida, olha o quarto e despede-se dele com o olhar. A médica chega e não
resiste a brincar:
- Bom dia! Já de partida? Pensei que
tinha vindo para morrer…
- E vim. Mas os milagres são assim,
podem contrariar-nos.
- E que milagre foi esse?
- Ouvi a Palavra do Deus que Está no
Céu!
Abraçaram-se. A senhora saiu e
Nyankosem foi fazer mais um milagre de vida. Desde o dia em que uma catana
derramou vida sobre si, ela anda devolvendo esse dom da Humanidade à
Humanidade.---------------------------------------------
Nota do Autor: Na região do Ghana, uma das maiores tribos, a Akan, subdivide-se em dezenas de subtribos. Uma delas chama-se Nyankosem. A sua língua tem o mesmo nome que é posto, com frequência, a raparigas e rapazes. A palavra significa A Palavra do Deus que está no Céu. A presente história é uma ficção baseada em factos reais.