O Clã do Comboio - Mix Cultural


Mix Cultural


O que os une
Esta não é uma história exclusiva do Clã do Comboio. O que ela tem de engraçado é que todos os eventos aconteceram no mesmo dia. A razão por que a publico na secção do Clã do Comboio prende-se com o facto do primeiro e último episódios terem acontecido a bordo do comboio. O certo, contudo, é que tem apontamentos de todos os meios de transporte públicos que uso durante o dia. Chamei-lhe Mix Cultural, mas poderia ter sido Mix Educacional. O que une estes apontamentos são questões culturais e educacionais. São traços da sociedade que vamos construindo. Não têm de ser alvo de acordo ou desacordo, de aprovação ou desaprovação. Têm, só, e a meu ver, de ser alvo de reflexão.

Restos da noite
Quando o regional das 7:47 em Riachos chegou a Vila Franca de Xira, eram quase 9 horas da manhã. Entraram as quatro em alvoroço, falando alto umas com as outras e com as pessoas que tentavam entrar com elas. Falavam e gritavam com essas pessoas, visivelmente embriagadas, com roupas de noite, já sem brilho e restos de maquilhagem do dia anterior, e quando um homem parou no meio do corredor, à espera que as pessoas à frente dele avançassem, uma delas disse, Ó senhor, tire daí o rabo. E correram todas na direção oposta, à procura da casa-de-banho num alarido gritado e muito pouco comum. E quando alguém, uma senhora de idade, com idade suficiente para perguntar o que lhe apetece e ter direito a resposta, perguntou donde vinham, e uma delas não hesitou:
- Estamos a chegar da discoteca.

É "mêmo velho"

O 28 estava à pinha. Estávamos todos apertados, encostados uns aos outros. Nos lugares reservados a idosos, grávidas e deficientes iam dois jovens a rondar os quinze, dezasseis anos. Junto a eles um idoso sentado e de pé uma senhora velhinha e dobrada pelo tempo. O idoso falou para o ar, como que para ser ouvido por alguém que se interessasse:
- Se fosse um filho meu, eu obrigava-o a dar o lugar à senhora.
Ninguém reagiu. A impessoalidade leva-nos a isto. Mas o idoso também não deu muito tempo. Virou-se para um dos jovens e disse-lhe:
- Esses lugares são para idosos, ouviu?
- Ouvi, ouvi.
- Então dê o lugar à senhora.
- Está bem, está bem.
Levantou-se. Não falou para a senhora, nem olhou para ela. Ela sentou-se e o velhote repreendeu:
- Esses lugares são para idosos.
- Eu já tinha dado o lugar, não já?
- Deu depois de eu falar...
- Já dei, não dei? Vê lá se te calas, ó velho.
O idoso encolheu-se assustado com o olhar ameaçador do miúdo que, antes de eu sair, ainda disse:
- Eu já tinha dado, ó velho. Óvistes velho? É mêmo velho!


A mim!
Entrámos no metro, ao final da tarde, no Cais do Sodré com destino a Baixa/Chiado, e a carruagem não podia estar mais cheia. Os alarmes das portas já tinham soado, mas havia pessoas que continuavam a forçar a entrada e a conseguir entrar. Uma senhora jovem encostou-se às costas dos bancos para se amparar, cada um se agarrou onde podia e um senhor de meia idade ficou entalado entre as pessoas sem ter onde se agarrar e foi por isso que desabafou:
- Não tenho onde me agarrar!
Ela olhou, sorriu e respondeu:
- Agarre-se a mim!


Mais curta do que curta
De regresso a casa, no comboio, sentei-me e fiquei a ver quem entrava e onde se sentava. Ela tinha trinta e poucos anos, era alta e possuía uma ossatura larga. Casaco de cabedal, meias de lycra castanho escuro, mas transparente, e uma saia curta, tão curta que era quase impossível classificar como saia. Era assim mais da categoria dos cintos.  Quando uma saia é curta, mas, ainda assim, é uma saia, as senhoras sentam-se e conseguem tapar o básico. Esta não conseguia! E lá foi ela, com o básico à mostra e os homens encabulados a olhar e fingir que não olhavam...


Stôra
Este foi o momento enternecedor do dia. Aquele que me fez acreditar de novo nas pessoas. Entraram juntas, a aluna e a professora, e ambas podiam e deviam ter deixado o trabalho no trabalho. Mas não deixaram. Continuaram no comboio como se estivessem na sala de aula. A aluna era surda, mas falava de forma perfeitamente percetível. Tinha um semblante feliz e pleno de esperança. A professora já tinha passado os quarenta, mas continuava a brilhar no seu olhar o prazer de ensinar. E foi no comboio que a ensinou a estruturar um trabalho, uma apresentação. Explicou-lhe o que era preciso fazer e como era preciso fazer. Puxou de um papel e foi explicando e exemplificando. Quando terminaram, a miúda atirou-se a uma calculadora gráfica:
- Tens trabalhos de casa?
- Não. É só para lembrar a cabeça.
- Por isso é que tens sempre 18.
E depois saíram e deixaram para trás um clima de entrega e dádiva.


Juízos de valor
Já não faço juízos de valor. Ando cansado da Humanidade. Deixo-os para que possa o leitor fazê-los, mas foi bom regressar a casa com a Stôra e a aluna cúmplices e distraídas no trabalho e pelo trabalho num dia de tanta agressividade.

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