O Ofício da Memória - Ele
VIII
Gosta de conduzir. Sempre gostou. Sobretudo assim, numa
tarde quente de verão com o sol pendurado lá no alto e o céu banhando o
horizonte de azul, janela aberta, mangas da camisa arregaçadas, um braço de
fora e o vento a barulhar nas roupas. É uma indescritível sensação de
liberdade. E consegue pensar. Consegue pensar sem obstáculos. É como se a
estrada livre lhe entrasse pela alma dentro e abrisse os caminhos do
pensamento. Conhece poucas coisas que aprecie mais e, contudo, é um
homem de gostar da vida e das coisas nela. Uma cerveja gelada numa tarde de
calor e amigos, ver as filhas crescer, ler um livro, ver o encarnado das
camisolas do Benfica sobre o verde mágico do relvado, dormir e, claro, fazer
amor. Conduzir tem outras vantagens, é a ilha das ilhas, o isolamento e a
confiança absoluta em si, é como um jogo de comunicar e é por isso que se sente
sempre profundamente realizado e feliz quando conduz. Mas hoje há qualquer
coisa no peito. Não é um sobressalto, não é uma preocupação, é algo indefinível
e perturbante. Uma interrogação. Fixa o olhar atento na estrada, faz gestos
mecânicos e procura na mente a pergunta. Só depois se dará ao trabalho de buscar
a resposta. Se ainda fizer sentido. Mas nada se esconde assim tão bem na mente
de um homem que o próprio não possa vasculhar e encontrar. E encontrou.
Encontrou a semente daquela inquietude. A caminho de estar com ela, a caminho
de revê-la, pergunta-se que sentido fará. Sim, que sentido faz este encontro?
IX
Em primeiro lugar, esclareceu-se a si próprio. Vai porque
quer. É um ato voluntário. Não vai enganar-se e pensar que não foi surpreendido
pelo mail dela estabelecendo contacto. Claro que sim. Mas, na altura, encarou
isso como uma surpresa boa. O seu receio não é revê-la, falar com ela. É mexer
num momento do passado que armazenou como perfeito e estragar-lhe os contornos
da perfeição. Mas ela pediu. E ele também vai porque ela pediu. Porque sentiu
na solicitação dela um grito de ajuda, um estender de mão para a tábua de
salvação. E quando nos estendem assim a mão, há que segurá-la e trazer à tona a
alma em apuros. Há
outra razão, sim. Não pode mentir-se isso, é o tipo de honestidade que a sua
consciência deve à sua consciência. Vai por curiosidade. Quer saber como ela
está. A verdade é que ela nunca foi nada para si e foi sempre tudo. Nunca foi nada
porque nada nos gestos dela interferiu na vida dele após o seu encontro. Foi
uma ausência. Só. Foi sempre tudo porque nunca deixou de habitar-lhe o
pensamento, nunca deixou de assaltar-lhe as emoções, nunca deixou de o guiar na
forma de entregar-se a uma mulher, de a receber em si.
X
É irónico que adore conduzir e esteja prazenteiramente
conduzindo para rever uma mulher do tempo de antes de conduzir. É incrível. Só
agora pensa nisso. Na altura, nem carta tinha. Era um adolescente que queria
ser homem, um homem a acabar de ser adolescente. Só agora repara na
coincidência. Conheceu há trinta anos a mulher que lhe inaugurou o corpo, a sua
inimitável ensinadora de sua aprendente sofreguidão. Como lhe está grato! São
curiosos os caminhos da vida. Há mesmo quem lhes chame coincidências, mas
coincidências deve ser palavra pouca para uma tão magnífica organização da
ordem das coisas no Universo. Ela começou este percurso com quarenta e sete
anos. A idade com que ele vem retomá-lo. Há entre os dois sessenta anos de
experiências, vividas em trinta, a amplitude etária que começa na barba rala e
no corpo musculado dos dezassete anos de um jovem e termina nos cabelos brancos
e na pele enrugada dos setenta e sete anos de uma senhora em serôdia idade.
XI
Preciso que seja
o meu oficial da memória é muito pouco para motivação, mas a verdade é que não foi preciso mais.
Não percebe as motivações dela. Não sabe que sentimentos possa nutrir por ele,
não sabe porque quer rememorar, mas percebeu que será ele a relembrá-los. E
aceitou porque não se importa de relembrar-se dessa aventura, desses dias de
regras a quebrar, de promessas desenhadas na areia da praia, de sussurros
excitados e valores absolutos como a emoção do momento. Tudo. Nada. Sempre.
Nunca. Todos. Ninguém. Eu e Tu. Foi pouco para Tudo. Foi muito para Nada. Foi
curto para Sempre. Foi longo para Nunca. Foram poucos para Todos. Foram muitos
para Ninguém. Foram Eu e Tu. Não foram Nós. Pelo menos até hoje. Se a motivação
dela é rememorar, para si é razão suficiente. Toda a que é necessária.
XII
Assim como que exercitando a memória, assim como que
preparando-se para cumprir a sua função de oficial da memória, vai antecipando
lembranças à mente como quem destapa um baú e solta uma vida inteira aí
fechada. Lembra-se de uma mulher de meia-idade, experiente, cheia de vida no
olhar, cheia de movimento no corpo, prenhe de amor para dar e, paradoxalmente,
de uma insegurança confrangedora na sua própria pessoa. Nasceu para dar. Quando
a conheceu tinha dado sempre. Sem nunca saber se receberia de volta. Amá-la foi
como dar-lhe a mão. Foi como beber-lhe a água para lhe matar a sede. Lembra um
jovem imberbe, inexperiente, pleno de energia, a rebentar de confiança e da
ousadia que nela cresce. Um rapaz-homem pronto a receber em si o mundo inteiro.
A conquistá-lo. Lembra-se de ter aprendido ela a receber e ele a dar. Esquisita
a vida das pessoas e as pessoas na sua vida.
XIII
Às vezes, as pessoas podem não significar muito para nós,
podem não captar-nos as atenções todas, podem não ocupar-nos todas as emoções,
podem não estar no nosso quotidiano, mas, ainda assim, num determinado momento
da nossa existência, podem mudar-nos a perspetiva, e isso, parecendo pouco, é
tudo. Esta mulher que vai rever mudou-o para sempre porque alterou a sua
perspetiva em relação às mulheres, em relação aos relacionamentos amorosos, à
busca do equilíbrio. Foi ela que o ensinou a dar e a ser generoso e atencioso
e, sim, isso começou no bailado dos corpos suados mas saiu dessa esfera e veio
a orientar todo o seu comportamento para com as mulheres. É por isso que não
pode deixar de pensar que não tendo ela sido nada, foi tudo. Em certa medida,
deve-lhe, mesmo, o sucesso do seu casamento. O que pensa, o que não pode deixar
de pensar, à medida que se aproxima dela, é que não importa tanto a quantidade
de tempo que estamos com uma pessoa como a qualidade dele, o que partilhamos, o
que aprendemos, o que ensinamos, como conseguimos, ou não, tocar cada pessoa
que cruza a nossa existência. Esta mulher esteve na aurora da sua existência
como homem e moldou o homem que veio a ser, o mesmo que conduz na sua direção.
XIV
Disse em casa ao que iria. Visitar uma velha amiga. Uma
pessoa importante na sua vida. Alguém que não vê há trinta anos.
- Então ainda eras um cachopo!
- Sim, um cachopo a querer ser homem. A importância dela para mim tem a ver,
exatamente, com essa transição.
Há muito que cultiva um
ambiente de transparência e confiança. Daí a revelação sem subterfúgios. De
resto, ela não quereria que ele mentisse. Quase o deixou claro, Só vem se puder e não se prejudique por isso.
Não prejudicou. Esta confiança e esta segurança acompanharam-no sempre. Cresceu
uma criança normal e feliz, como deveriam ser todas as crianças, fez-se um
adolescente dinâmico e ousado, às vezes atrevido, como todos os adolescentes
devem ser. Estudou. Formou-se. Tudo dentro da maior normalidade. O que nele se
destacou, sempre, foi a segurança com que abraçou projetos e desafios, a
confiança nas suas ações, os riscos calculados e assumidos. Estes ingredientes
cozinharam-se com a sua sensibilidade e com uma moderada capacidade intelectual
e fizeram dele um homem de sucesso. Conseguiu emprego estável, casou, teve
filhos, duas meninas, comprou casa, fez férias, trocou de carro, construiu o
seu pequeno império de afetos e bens, alicerçado no trabalho e na confiança. Inabalável
confiança. Namorou o que quis, com quem quis, teve alegrias e desilusões e,
quando olha para trás, sente-se feliz e realizado com o seu percurso. Quando
olha para a frente vê outro tanto a conquistar. Sente-se no auge da vida, capaz
de abraçar qualquer desafio e por vezes arrisca, quase sempre pensando na
família, na mulher, nas filhas. E é esta solidez de estar, é este otimismo
constante, este olhar para as barreiras e ver-se do outro lado, que o trazem
hoje aqui. Isso e a curiosidade de revê-la. Ninguém sabe como se conheceu
egoísta e umbilical na forma de olhar o mundo e em particular as mulheres nele.
Eram fontes de prazer e satisfação, eram portos de desafogar a sofreguidão e
tomar para si tudo o que os sentidos tinham para dar. Mas tomava pouco. Até que
ela o ensinou a olhar a mulher que estivesse consigo. A pensar nela. A dedicar-se-lhe
como se fosse a última coisa que fizesse na vida, ensinou-o a escutá-la, a orientar-se pelo seu desejo, qual bússola, no seu corpo, qual mapa de prazer. E é com essa pessoa que vai encontrar-se. Primeiro, possuiu-a, ou foi possuído por ela, a ordem tanto faz, possuíram-se mutuamente com consentimento e incendiado desejo de ambos. Depois, apaixonou-se por ela. Foi rápido como um vírus. E como um vírus demorou mais tempo a afastar do que havia demorado a chegar. Por fim, amou-a à distância. Sofridamente. Mais tarde, ficou-lhe agradecido e reconhecido. Hoje, admira-a. E, sem dúvida, quer vê-la só porque sim, sem razão nem explicação.
XV
Estacionou na avenida, de frente para o mar. Não estava atrasado. Ficou uns momentos contemplando o oceano, a beber-lhe o poder com os olhos e a alma. Inspirou fundo diversas vezes e sentiu o fresco marinho invadi-lo, o azul enchendo-lhe o peito e pintando-lhe as ideias. Entrou no hotel, perguntou pela esplanada e subiu. Quando saiu para o exterior, não pôde deixar de reparar no esplendor da paisagem. Tão simples. Um areal. Um oceano. Um sol imenso e laranja. Procurou-a com o olhar. Não foi difícil encontrá-la. Só havia ali duas pessoas e só uma era mulher. Vestido encarnado, chapéu de aba larga, casaquinho de malha, óculos de sol, cabelo arranjado. Era a mesma figura generosa e larga, embora envelhecida. Estava bonita. Dirigiu-se para ela. E, com tanto para dizer, silenciaram as palavras com um gesto simples. Ela levantou-se. Ele caminhou na sua direção. E abraçaram-se longamente como quem preenche um espaço vazio de emoções, uma falha, uma ausência. E ficaram sentindo o tempo sem o medir, estreitando laços. Sem palavras, diziam, Nunca me esqueci de ti, Nem eu de ti, Estiveste sempre comigo, E tu comigo, Foste importante para mim, sabes, fizeste-me, Foste importante para mim, sabes, refizeste-me. E quando as palavras mudas, passadas no tato, se diluíram no tempo, as primeiras ecoaram na tarde:
- Esse vestido é o que eu penso que é?
- Com uns arranjos!
Continua...