Com Licença da Palavra
Caros leitores e amigos,
Pensei bastante se
haveria, ou não, de escrever esta história. E a razão é simples. Tem um
palavrão. Mas não é um palavrão uma vez. É um palavrão, sempre o mesmo, várias
vezes em cada frase.
Decidi escrever. E a
razão também é simples. Esta é uma típica história do autocarro 28 com uma
típica figura dessas que vagueiam pelos transportes públicos. Substituir a
palavra por outra, ou por uma letra, ou por uns símbolos, retiraria toda a
piada e ênfase que a palavra coloca nas frases. Assim sendo, cá vai, com licença da palavra...
Por razões de trabalho
tive de fazer uma viagem diferente no 28. Basicamente, atravessar toda a
cidade. Coisinha para quarenta minutos. Estava com dois colegas, o C e a MP.
Ela entrou umas duas paragens depois de nós. Era uma senhora nos quarenta,
baixinha, cerca de um metro e meio, cabelo liso, loirito e comprido, apanhado
num rabo de cavalo. Faces redondas, muito alvas, com sardas e ruborizadas pela
emoção. Tinha uns sapatos rasos e umas calças verdes, tipo fato-de-treino, mas
coladas às pernas. Trazia os braços abertos e sacos de compras pendurados deles
e balançava para os lados à medida que avançava no espaço com um enorme
chapéu-de-chuva numa das mãos. Junto a nós, que íamos de pé, estava um banco
livre. A senhora aproximou-se e disse, muito educada:
- Com licença? Os
senhores dão-me licença? Obrigada.
E não se sentou.
Atirou-se para cima do banco e alapou-se. Acertou com um saco na perna da MP.
Ajeitou-se no banco e começou um longo solilóquio em jeito de desabafo pessoal
e coletivo em que tocou a maioria dos assuntos da atualidade. Falava alto como
se fossemos responder-lhe. Não íamos. Mas todo o 28 a podia ouvir na perfeição.
- Ah... isto é uma merda! O 28 está uma merda. É
só a merda das greves. Antigamente era um bom serviço, agora é uma merda. Este
país está uma merda. E os políticos? Os políticos só fazem é merda e depois vêm
para a televisão e desculpam-se com a merda da Troika. E a televisão? A televisão
antigamente dava programas bons, agora é tudo uma merda! Uma pessoa antigamente
ia às compras e trazia alguma coisa que se visse. Agora? Agora é tudo uma
merda!
Às tantas, alguém saiu do autocarro 28 e, ao sair,
tocou no chapéu-de-chuva da senhora. A reação não se fez esperar:
- Oh, oh, querem lá ver que me abalam com a merda
do chapéu?!
O C olhou para mim, sorriu e fechou esta história:
- Ó João, já temos aqui mais um motivo de
narrativa!
E tínhamos.
jpv