O Corpo da Ideia
Caras leitoras,
Este, é um homem de que não ides gostar. Quero dizer, talvez não vos importásseis de amá-lo por uma tarde, uma noite, um dia, um fim-de-semana, mas esse conceito de um amar efémero e carnal não é para vós o conceito de amar, pelo menos, aquele que acarinhais mais e melhor. Não quero com isto dizer que sejais contrárias à ideia dos prazeres do corpo. Não. De todo. Acontece que, para vós, mulheres, os prazeres do corpo são uma extensão de outro amor. O amor alicerçado na dedicação, no carinho, no compromisso e na felicidade. E é quando uma tal sintonia no plano afetivo se atinge que a vossa mente e o vosso corpo despertam para os prazeres da carne. E é por isso que não ides gostar deste homem. É que, para ele, a carne vem primeiro. Acontece que, no seu caso, há uma arte, uma generosidade, uma envolvência e uma cortesia que mulher alguma pode ignorar. E caímos, assim, num paradoxo. Querei-lo, mas querei-lo só para vós. Para cada uma de vós. E isso é contra a sua natureza pois há muito que se assumiu como sendo de todas vós. Ao mesmo tempo!
Caros leitores,
Esta, é uma mulher de que não ides gostar. Quero dizer, talvez não vos importásseis de amá-la por uma tarde, uma noite, um dia, um fim-de-semana, mas esse conceito de amor não é para ela aceitável. Possuí-la pela carne implica um caminho de provações e
compromissos que, na maioria dos casos, não estais prontos para aceitar. De
resto, respondeis a um impulso básico e primário de cobrição em que amor e sexo
se confundem e onde o primeiro pontua sempre desde que aconteça o segundo. É
para vós o amor algo de imediato e jactante e, em abono da verdade, diverso e
múltiplo. Podeis bem amar uma mulher, dedicar-lhe uma vida inteira, sem que
isso vos impeça de ter outras em vosso leito. Tendes um coração largo, generoso
e espaçoso onde todas caberão e onde cada uma terá seu quartinho para não
misturar-se com as outras. Ora, isso é contra a natureza desta mulher que
aceitará em si um só homem. Aquele que provar merecê-la. Sempre. Única e exclusivamente.
Vai ela chamar-se Joana, Joaninha entre as amigas, que outro nome não pode ter uma tal capacidade de amar, uma tal dedicação. E foi com ele que o desposou. E quando o ouviu dizer Sim ao Padre, seu coração tremeu e precipitou-se empurrando o seu Sim não fosse o momento perder-se. Aquele era o homem da sua vida. O primeiro nas suas prioridades. O escolhido. Aquele que quer para as manhãs de Primavera, as tardes de Verão e as noites de Inverno até que cheguem ambos ao Outono da vida. Será este o homem das suas alegrias, das suas tristezas e dos seus prazeres íntimos. Os mesmos que farão dele o pai de seus filhos. Dedicou-lhe o seu coração, dedicou-lhe a sua mente, dedicou-lhe a sua atenção e o seu tempo e teve dele os filhos que só dele queria. E sorveu-o para si. Acompanhou-o para todo o lado, sofreu com as dores dele, alegrou-se com as alegrias dele, ajudou-o no trabalho, poupou-o às preocupações que poderia ter partilhado. Fez do seu casamento a sua obra de arte e colocou-o a ele e aos filhos no centro dela. E confiou. Por volta dos seis anos de casamento sentiu-o mais distante, menos entusiasmado com a sua vida a dois. Organizou umas férias, tentou percebê-lo, não foi capaz. O homem era um bloco granítico. Não se revelava. Deu-lhe tempo. Refugiou-se na leitura. Gostava de ler, mas, desde que se casara, colocara esse hábito de parte como tanta coisa na sua vida. Agora voltava a ele. Lia os romances, uns atrás dos outros, os franceses, os ingleses, os alemães, os portugueses e os russos. Adorava os russos. Mergulhava naquela dor e esquecia a sua. Lia clássicos e contemporâneos com a mesma avidez. Sofria com eles. Entusiasmava-se com eles. Deixava-se abraçar e beijar e possuir pelos seus encantos. Quando Carlos acordou do desinteresse em que mergulhara, Joaninha continuou a ler, mas percebeu a sua mudança e deu-lhe atenção e a sua relação viu de novo nascer dias de luz e alegria. Ela nunca deixou de ler e, três anos mais tarde, quando ele voltou a emigrar para a indiferença, ela soube de novo onde refugiar-se. Cuidava dos filhos, cuidava dele, amava-o quando ele lhe pedia, mas quase sem sair do universo que os livros lhe criavam. As escapadelas começaram por ser para as páginas impressas e terminaram sendo das páginas impressas. O tempo foi passando e Joaninha sofria porque não fora aquela a vida com que sonhara, mas não se sentia com forças para suportar o fardo do casamento sozinha. E assim coabitavam, quase cordiais, quase indiferentes. Até ao dia em que ele saiu do banho, estava sozinho e não contava que ela entrasse, mas ela entrou como tanta vez fizera na intimidade do casal, e surpreendeu-lhe as costas marcadas pelas unhas de outra que as suas não haviam desenhado aquele êxtase. E aconteceu a conversa que ouvimos há pouco e agora se retoma.
- Tem calma. Eu sei o que sentes...
- Não sabes, não. Não sabes, Carlos... mas... sabes que mais? Vais saber!
- Acho que sei, Joana.
- Não sabes, não. Há coisas que não imaginas. Sabes, há pouco disseste, tentando ser agradável no meio de toda a trapalhada que fizeste, que eu fora uma ideia em muitos corpos... e foi essa frase tua que me provocou. Eu vou dizer-te a verdade...
- Qual verdade, Joana?
- A verdade, Carlos, é que eu te traio há muitos anos, com muitos homens. Diferentes nos seus corpos e nos seus desejos e uníssonos num só facto. Todos queriam possuir-me. E eu deixei. Mais do que isso, gozei os prazeres da carne com cada um deles.
- Mas que raio dizes tu, Joana? Há anos que não sais de dentro desses livros.
- Saio. Saio, Carlos... saio de dentro dos livros para trair-te com o teu próprio corpo. Há muitos anos, Carlos, que não faço amor contigo. Há muitos anos que não me entrego a ti. Tu, pobre Carlos, não foste mais do que um corpo para muitas ideias.
Vai ele chamar-se Carlos que outro nome não pode ter um
tal coração. E foi com ele que a desposou. E quando o Padre lhe perguntou se
era de sua livre vontade que a aceitava em matrimónio, ele respondeu Sim. E
estava a ser honesto. Aquela era a mulher da sua vida. A primeira nas suas
prioridades. Aquela a quem amava. Descobriria mais tarde que era capaz de amar
outras, mas isso teve de esperar. Seis anos se passaram. De felicidade. De
sintonia e genuína exclusividade. Carlos tinha os olhos fechados para o Mundo e
as mulheres nele. No decurso desse sexto ano, contudo, coisas houve que o
fizeram mudar de perspetiva. Olhar o Universo com os olhos abertos. Ver e
observar as coisas, os acontecimentos e as pessoas à sua volta. E amou. Amou
outra mulher. Uma paixão tórrida e consumidora que escondeu a custo da sua
própria mulher. Quis dizer-lhe, mas conteve-se. Preferiu esperar. Ser prudente. E,
menos de um ano volvido, começava a encontrar as falhas nesta mulher perfeita
que aparecera na sua vida. E fechou esse capítulo. Tentou esquecê-lo. Nunca
conseguiu. Por fim, decidiu guardá-lo como uma memória grata. Só isso. Tudo
isso. E refugiou-se de novo no seu porto seguro, no seu lar, na sua amada de
todos os momentos. Aquela que escolhera para casar e viver a vida inteira. Viu
um documentário na TV sobre as crises matrimoniais onde se falava
insistentemente no fenómeno da crise dos sete anos. Atribuiu o que acontecera a
isso e fechou sobre o seu peito esse capítulo entusiasmante e efémero da sua
vida. Durante três anos voltou a ser o Carlos que sempre fora. Quando perfez
dez anos de casamento, voltou a sentir-se atraído por outra mulher. Desta vez
estava preparado para o evento e sabia como resistir-lhe. Não resistiu. E não
resistiu ao seguinte e ao outro e ao próximo que seria o último e ao que veio
depois dele e ainda a mais uns quantos de circunstância. Hoje, está casado há
dezasseis anos, tem um historial de relações extra-conjugais paralelas a um
casamento feliz. Quase sempre. Já se percebeu. Já aprendeu a conhecer-se. E, o
mais difícil de tudo, já aprendeu a aceitar-se como é. Mantém-se fiel ao seu
amor primeiro, fiel aos sentimentos que nutre pela sua mulher, tem com ela uma
relação estável e bonita e, contudo, decidiu deixar de fingir que não gosta da
atração inicial, do enamoramento, da sedução e depois da entrega total, do sexo
sem complexos e, por vezes, sem sexo. Percebeu que na vida há pouco mais do que
aquilo que sentimos e experienciamos e percebeu, também, que há muito pouca
coisa de real e verdadeiro interesse em todo o espectro do Universo conhecido
para além das pessoas. As pessoas são o verdadeiro milagre da vida e as
mulheres são as melhores das pessoas. A graça e a graciosidade, a elegância e a
sensibilidade, as formas, o espírito, a amplitude do seu olhar, as suas
inseguranças e as forças, a generosidade e a compreensão, fazem deste complexo
ser, na opinião de Carlos, a mais extraordinária das criações de Deus e da
Natureza que é Deus junto dos homens. É um hotel concebido para receber os
amantes do sexo. Cama redonda, varão de inox, luzes néon encarnadas, muitos
espelhos e uns desenhos alusivos às práticas que aí se espera aconteçam. Carlos
está de joelhos ao centro da cama, à sua frente uma mulher está de quatro
oferecendo-lhe o sexo e as nádegas. É generosa nas formas, libidinosa nos
gestos e insaciável no desejo. Carlos incita-a com palmadas que lhe desenham as
mãos na carne alva das nádegas, ambos gemem em sintonia e quando se dá a
explosão das explosões, os dois estão preparados para mais. Ele vira-a e tomba
sobre ela. Ela abraça-o, aceita-o em si e crava-lhe as unhas nas costas. Não
foi propositado. Foi um impulso. Deixou uma marca. E a marca originou uma
conversa.
- És
um canalha, Carlos, um canalha sem vergonha! O que eu te amei, meu Deus!
-
Tem calma.
-
Calma? Como podes pedir-me calma? Tu destruíste as nossas vidas. Eu nunca te
pedi nada, Carlos, nunca! A não ser que me amasses...
- E
amo!
-
Mentiroso! És um mentiroso sem emenda!
-
Sim, sou. Não nego. Mas não quanto a amar-te...
-
Como podes amar-me Carlos? Como pode isso ser verdade? Acabaste de assumir que
dormiste com essa galdéria.
-
Por isso mesmo. Porque assumi. Ela não significou nada...
-
Quantas foram? Diz-me! Quem mente uma vez...
-
Isso não é importante.
-
Como não? Claro que é importante.
- Não
é não. Não interessa quantas foram, interessa que não significaram nada. Tenta
compreender-me. Eu vivi até aos dez anos do nosso casamento sem que nada disto
acontecesse e nessa altura percebi a efemeridade da vida, percebi que eram
importantes para mim os prazeres da carne... e essas mulheres, as diversas
mulheres com quem me deitei, foram só isso, prazeres do corpo. Mas foste tu a
ideia. A ideia do amor. Sim, eram os corpos delas, a sua graça, a sua
variedade, mas foi sempre a tua ideia. Tu foste uma ideia em muitos corpos.
-
Sai daqui Carlos, sai! Sai! Metes-me nojo! És asqueroso! És a negação de tudo o
que eu pensava que éramos um para o outro. Sai daqui...
-
Tem calma. Eu sei o que sentes...
- Não
sabes, não. Não sabes, Carlos... mas... sabes que mais? Vais saber!
- Tem calma. Eu sei o que sentes...
- Não sabes, não. Não sabes, Carlos... mas... sabes que mais? Vais saber!
- Acho que sei, Joana.
- Não sabes, não. Há coisas que não imaginas. Sabes, há pouco disseste, tentando ser agradável no meio de toda a trapalhada que fizeste, que eu fora uma ideia em muitos corpos... e foi essa frase tua que me provocou. Eu vou dizer-te a verdade...
- Qual verdade, Joana?
- A verdade, Carlos, é que eu te traio há muitos anos, com muitos homens. Diferentes nos seus corpos e nos seus desejos e uníssonos num só facto. Todos queriam possuir-me. E eu deixei. Mais do que isso, gozei os prazeres da carne com cada um deles.
- Mas que raio dizes tu, Joana? Há anos que não sais de dentro desses livros.
- Saio. Saio, Carlos... saio de dentro dos livros para trair-te com o teu próprio corpo. Há muitos anos, Carlos, que não faço amor contigo. Há muitos anos que não me entrego a ti. Tu, pobre Carlos, não foste mais do que um corpo para muitas ideias.
jpv