Num Voo Nunca Acontece Nada
Fazemos o check-in, tiramos o relógio, o cinto e os anéis, passamos no detetor de metais, percorremos a loja dos chocolates, a dos perfumes e a das revistas, dirigimo-nos para a porta de embarque, esperamos, entramos no avião, arrepiamo-nos no momento da subida, comemos uma refeição a bordo, lemos uma revista, vamos à casa-de-banho, arrepiamo-nos com a descida, saímos à rua e... fazemos tudo de novo. O que a seguir se conta são histórias entre o primeiro e o último momento da sequência que acabámos de registar.
Roupa Suja
Três semanas fora do país. Não de um país qualquer. Fora de Portugal. Para os portugueses, partir e chegar têm cargas emocionais diferentes dos outros povos. E a razão é simples. Os portugueses nunca partem sozinhos. Levam consigo todo um povo, todo um orgulho e, paradoxalmente, toda uma humildade. E atrás deles vai sempre a nação. Se repararem, quando pessoas de outros países se encontram no estrangeiro, falam desse país em que estão de visita ou em trabalho. Os portugueses põem-se logo a falar de Portugal e, muito provavelmente, de comida. Acho mesmo que a frase portuguesa mais dita no estrangeiro é "Não há comida como a nossa." Nisto, só há um povo que se nos aproxima: os brasileiros. Mas, esses, eu não tenho a certeza de que sejam outro povo.
Três semanas fora do país. Em férias. Com as malas no porão e as histórias na cabeça. Desde que partira que começara a imaginar como contá-las. Já sabia como fazê-lo na altura. Só lhe faltavam as histórias. Agora não lhe falta nada. Era um voo Istanbul-Lisboa com escala em Frankfurt. Estavam no ar há uma hora e picos. Ele dormitava. Ela dormia profundamente. Os cachopos rabiscavam cores num livro de pintar. E foi então que ela se deu. Começou por lembrar-se do bacalhau com natas que ela fazia lá em casa, depois lembrou-se do bacalhau cozido com batatas na noite da consoada, depois lembrou-se do bacalhau à lagareiro e, finalmente, veio-lhe à memória a roupa suja que é bacalhau com rodelas de ovo cozido, azeitonas e couves e, de repente, sentiu-se confortável, como se estivesse em casa para começar a almoçar e não a doze mil pés de altitude. Imaginou um branco de Pias e pensou de si para consigo:
- Por que raio não me sai o bacalhau da cabeça?
Resolveu despertar. Esticou o pescoço, levantou a cabeça, espetou o nariz no ar e cheirou. Inspirou profundamente duas vezes:
- Môr, môr... não vais acreditar, acho que vai alguém a comer bacalhau!
- Cala-te e dorme. É uma ilusão. A altitude baralha-nos os sentidos.
Não conseguiu acordar-lhe a curiosidade, mas também não desistiu de investigar. Estava na hora de ir à casa-de-banho. Percorreu o corredor devagarinho no sentido da cauda do avião. Na penúltima fila de bancos estava, no lugar junto ao corredor, um jovem com o portátil aberto. No lugar do meio lá estava ele. Mais de sessenta, enfiado numas calças de fazenda, uma camisola de lã e um casaco. À sua frente, uma caixa de gelado e dentro dela bacalhau com batatas e couves regadas com azeite. Nem experimentou outra língua:
- O senhor é português!
- A menos que você conheça outro povo que faça bacalhau com batatas...
- Espantoso!
- Espantosas são as porcarias que eles nos dão para comer no avião.
- De acordo! Mas... como é que conseguiu? Você tem bacalhau com batatas à frente e parece quente.
- Morno!
- Sim, mas...
- Vocês espantam-se com pouco. Cozinhei o bacalhau, púzio nesta caixa bem apertadinho, sem o azeite. Depois, pus a caixa num saco térmico e trouxe uns saquinhos de azeite que dão no Mec... aquela coisa dos hambúrgers...
- MacDonald's...
- Isso.
- Sim, mas não é proibido comer aqui comida sem ser do avião?
- Sei lá. Há bocado passaram aí com a comida de plástico, eu disse, No, diet, e tirei a caixa...
- Fantástico!
- Amigo, vá por mim, onde há um português, pode haver bacalhau. É servido?
- Não, obrigado.
- Vá lá...
- Não, obrigado.
Nem foi à casa-de-banho. Voltou para o lugar fascinado. Um português a comer roupa suja num voo Istanbul-Lisboa. Quais seriam as probabilidades? E sentou-se tranquilo e tranquilo estava quando uma hospedeira se aproximou com uma caixa de gelado na mão:
- Sir, the gentleman back there asked to deliver you this box... as an offer.
Roupa Suja
Três semanas fora do país. Não de um país qualquer. Fora de Portugal. Para os portugueses, partir e chegar têm cargas emocionais diferentes dos outros povos. E a razão é simples. Os portugueses nunca partem sozinhos. Levam consigo todo um povo, todo um orgulho e, paradoxalmente, toda uma humildade. E atrás deles vai sempre a nação. Se repararem, quando pessoas de outros países se encontram no estrangeiro, falam desse país em que estão de visita ou em trabalho. Os portugueses põem-se logo a falar de Portugal e, muito provavelmente, de comida. Acho mesmo que a frase portuguesa mais dita no estrangeiro é "Não há comida como a nossa." Nisto, só há um povo que se nos aproxima: os brasileiros. Mas, esses, eu não tenho a certeza de que sejam outro povo.
Três semanas fora do país. Em férias. Com as malas no porão e as histórias na cabeça. Desde que partira que começara a imaginar como contá-las. Já sabia como fazê-lo na altura. Só lhe faltavam as histórias. Agora não lhe falta nada. Era um voo Istanbul-Lisboa com escala em Frankfurt. Estavam no ar há uma hora e picos. Ele dormitava. Ela dormia profundamente. Os cachopos rabiscavam cores num livro de pintar. E foi então que ela se deu. Começou por lembrar-se do bacalhau com natas que ela fazia lá em casa, depois lembrou-se do bacalhau cozido com batatas na noite da consoada, depois lembrou-se do bacalhau à lagareiro e, finalmente, veio-lhe à memória a roupa suja que é bacalhau com rodelas de ovo cozido, azeitonas e couves e, de repente, sentiu-se confortável, como se estivesse em casa para começar a almoçar e não a doze mil pés de altitude. Imaginou um branco de Pias e pensou de si para consigo:
- Por que raio não me sai o bacalhau da cabeça?
Resolveu despertar. Esticou o pescoço, levantou a cabeça, espetou o nariz no ar e cheirou. Inspirou profundamente duas vezes:
- Môr, môr... não vais acreditar, acho que vai alguém a comer bacalhau!
- Cala-te e dorme. É uma ilusão. A altitude baralha-nos os sentidos.
Não conseguiu acordar-lhe a curiosidade, mas também não desistiu de investigar. Estava na hora de ir à casa-de-banho. Percorreu o corredor devagarinho no sentido da cauda do avião. Na penúltima fila de bancos estava, no lugar junto ao corredor, um jovem com o portátil aberto. No lugar do meio lá estava ele. Mais de sessenta, enfiado numas calças de fazenda, uma camisola de lã e um casaco. À sua frente, uma caixa de gelado e dentro dela bacalhau com batatas e couves regadas com azeite. Nem experimentou outra língua:
- O senhor é português!
- A menos que você conheça outro povo que faça bacalhau com batatas...
- Espantoso!
- Espantosas são as porcarias que eles nos dão para comer no avião.
- De acordo! Mas... como é que conseguiu? Você tem bacalhau com batatas à frente e parece quente.
- Morno!
- Sim, mas...
- Vocês espantam-se com pouco. Cozinhei o bacalhau, púzio nesta caixa bem apertadinho, sem o azeite. Depois, pus a caixa num saco térmico e trouxe uns saquinhos de azeite que dão no Mec... aquela coisa dos hambúrgers...
- MacDonald's...
- Isso.
- Sim, mas não é proibido comer aqui comida sem ser do avião?
- Sei lá. Há bocado passaram aí com a comida de plástico, eu disse, No, diet, e tirei a caixa...
- Fantástico!
- Amigo, vá por mim, onde há um português, pode haver bacalhau. É servido?
- Não, obrigado.
- Vá lá...
- Não, obrigado.
Nem foi à casa-de-banho. Voltou para o lugar fascinado. Um português a comer roupa suja num voo Istanbul-Lisboa. Quais seriam as probabilidades? E sentou-se tranquilo e tranquilo estava quando uma hospedeira se aproximou com uma caixa de gelado na mão:
- Sir, the gentleman back there asked to deliver you this box... as an offer.